segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Conto


Crônica de um salto alto

Eu fiquei assim desconfiado, não entendendo porque ela me deixou de lado. Estávamos juntinhos e muito bem. Saíamos com frequência, dançávamos na pista, andávamos pelo shopping, íamos ao cinema, ao teatro e a bons restaurantes.

Um dia, de repente, sem avisar, ela simplesmente me colocou na prateleira junto de outros companheiros e não veio mais me pegar. Acho que não quer mais saber de mim. Aqui me vejo em grande solidão, sinto falta da ginga, do passo-a-passo e do cruzar de pernas. Às vezes ela sentava no sofá, inclinava o corpo para trás, apoiava as pernas no pufe e eu ficava ali, aparecendo para valer, só me exibindo.

Sinto falta do sucesso, do glamour, das amigas dela perguntando por mim, de onde eu era, qual a minha procedência, desejando encontrar um igual. Mas nós éramos o par-perfeito, o número certo, o encaixe preciso. A curva do pé dela e a curva do meu corpo – tudo havia se adaptado.

Ouvi dizer que ela levou um tombo... Não venham me culpar, dizer que não tive firmeza, porque não estávamos juntos nesse dia, ora, não foi comigo que ela caiu! Eu estava na lavanderia... tenho um álibi. E não foi só a queda, pelo que disseram, parece que rompeu um ligamento. Mas eu não queria que ela rompesse nossa ligação, que era tão profunda. Como pode alguém romper assim sem nem dar uma explicação? Espantei-me com a frieza e a facilidade para esquecer. Será que me trocou por outro? Depois disso, ficou uns dias usando uma bota esquisita, e quase não saía da cama, acho que estava deprimida com sua decisão. Ficava com aquela bota tipo Robocop numa perna só, acho que era uma maneira esdrúxula de me provocar, talvez só quisesse chamar a minha atenção.
...

Ora, vejam só, lá vem ela... segurando uma sacola nova, chegou em casa e foi retirando de dentro uma caixa de sapatos. Abriu e lá estavam elas: duas sapatilhas brilhantes e com um laço de fita em cada ponta. Puro exibicionismo! Olha lá! Cadê o salto? Não tem salto? Então é uma revolução! Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? Ela experimenta e desfila pela casa, diz que está confortável. Mas ela revela que não consegue me esquecer, que sente minha falta... Ah, eu já desconfiava..
...
Logo logo há de se arrepender. Mas, enquanto isso, fico aqui na minha solidão, abandonado nessa prateleira, de frente para a parede, onde me sinto de castigo. Óh, céus! O que fiz para merecer isso? Meus companheiros de quarto sempre me avisaram que ela era assim mesmo, que logo logo se fartaria da minha companhia e iria me abandonar. Diziam que suas predileções eram sazonais, que eu não duraria mais que uma estação. Eu não queria acreditar, mas confesso que em nossos breves, porém, intensos encontros, eu tinha muito medo de que ela pudesse me esquecer de uma hora para a outra. Mas eu sempre tive esperanças de que nossa história fosse para valer, que nossa relação nunca sairia de moda.

Vejo que eu estava mesmo iludido, nesses dias ela não tem sequer olhado para mim. Passa por mim direto, parece que nem me percebe. Não chegamos a ter uma briga, mas ela se comporta como se estivéssemos de mal. E agora, que também já deixou de lado a bota Robocop, fica para lá e para cá desfilando com aquelas novas sapatilhas prateadas reluzentes. Calçado novo, cheiro de novo, eu sei. Mas pode ter o brilho que for, esse qualquerzinho, desprovido de salto, nunca conseguirá me substituir à altura! Ele nunca conseguirá valorizá-la como eu a valorizo! Sei dar o devido valor à sua coxa torneada, ao seu bumbum arrebitado, à sua panturrilha jovial. Ele nunca massageará o seu ego como eu massageio! Ele não saberá reforçar sua confiança em si mesma, a sua elegância. Jamais conseguirá promover a sua entrada triunfal quando chega numa festa, marcando presença. Ele não terá o impulso necessário para elevá-la quando ela mais precisar de uma postura imponente.

Mas tudo bem, talvez ela tenha que descobrir isso por si mesma. Deixem-na! Deixem-na desfilando por aí com sua rasteirinhazinha! Deixem-na descer alguns centímetros. Quando ela perceber que eu sou o parceiro que a coloca para cima e não a decepciona, ela vai voltar. Tudo bem, devo reconhecer que nunca fui perfeito, já a feri, já a machuquei, deixei até mesmo que bolhas se formassem, mas não foram marcas profundas. E, além do mais, ela não deixava barato, quando isso acontecia... Ela me deixava de lado, podia ser a festa que fosse, e me trocava por confortáveis Havaianas, enquanto me esnobava. Eu já paguei pelo que fiz e acho que foi o suficiente. Essas meras picuinhas do dia-a-dia não justificam todo esse desprezo agora.
...

Ela continua a maior parte do tempo sozinha na cama. Será que está deprimida? Já estou ficando preocupado. Lá vem uma amiga dela para visitá-la! A amiga passa por mim e eu grito: - Pegue-me! Leve-me! Peça-me emprestado! Veja como sou lindo! Vou fazer você se sentir o máximo! Leve-me! Por favooor! – Eu suplico, mas é inútil. Acho que ela não pode me ouvir... Essa vida sobre a prateleira está extremamente entediante, quase já não consigo suportar. A amiga senta na beirada da cama dela e as duas conversam, trocam confidências, mas nem comentam sobre mim, acho que desconfiam de que eu possa estar prestando atenção no papo.

A amiga se levanta e se despede, desejando boa recuperação, passa por mim, olha na minha direção e volta. – Amiga, tenho uma festa no sábado, você pode me emprestar esse daqui? Combina perfeitamente com o meu vestido azul marinho e nós calçamos o mesmo número. Deixe-me experimentar, acho que vai caber. – E a amiga me pega, me experimenta e, não encontrando oposição, diz que vai me usar. Saber que ainda desperto o interesse de alguém me faz sentir um pouco aliviado, não vejo a hora de sair para dar umas voltinhas. Já que ela não me quer, tem quem queira, vou dar um “rolé”.
...

Três semanas e meia e já fui devolvido... será que não prestei? Aproveitei um bocado, é verdade. Mas se o bom filho à casa torna, o bom amante também. Pude experimentar outra pele, outro jeito de caminhar, outras formas do corpo, especialmente da sola e do peito do pé, mas acho que eu já estava adaptado à minha antiga dona, minhas formas se encaixavam na dela. Assim, não pude demonstrar tanta eficiência à sua amiga, acho que nossas formas não se ajustavam tão bem. A verdade é que meu caso com minha antiga dona não era mera acomodação, tratava-se mais de uma predileção. Mas ela continuou me deixando na prateleira.
...

Dois meses já se passaram desde que a gente se separou. Ela viajou nesse meio tempo e já voltou. Ultimamente ela tem estado bastante ocupada. Fica de um lado para o outro, num corre-corre estonteante. É o momento da prova real: se é verdade aquela história do tombo, acho que já passou um bom tempo, já deu para ela se recuperar do trauma. Se ela não me esqueceu, vai voltar para mim. Opa! Lá vem ela! Vou fingir que não estou nem aí... Vou me fazer de difícil. Desconfio de que ela tenha se arrependido. Então, agora que venha choramingar e pedir desculpas. Está pensando o que? Que eu estou parado numa prateleira só esperando por ela? Acha que pode pisar em mim? Comigo não!

Ela veio se aproximando de mim, olhou-me com olhos de saudade. Veio e me pegou com jeitinho. Não resisti. Ela me calçou e foi como eu sonhei durante todo esse tempo: o encaixe perfeito. Fiquei aos seus pés. Ela cresceu doze centímetros, mas fui eu quem me senti poderoso. Vamos, vamos passear, meu amor. Vamos, que a rua nos espera! Não vamos perder mais tempo que nós temos um mundo inteiro pra percorrer! Vamos que a festa é nossa! Só me promete uma coisa? Não desce do salto nunca mais, tá?
...
E foi assim que a gente reatou o nosso caso. Depois disso, a gente ainda se estranhou um pouquinho, ela andou pisando de mau jeito em umas pedras portuguesas nessas calçadas ingratas e, assim, foi aos poucos me tirando umas lasquinhas. Teve até uma vez que eu não aguentei e deixei escapar o meu saltinho, e ela teve que me entregar ao sapateiro para conserto. Mas isso não foi nada demais, ela entende que a culpa não é minha. Ela sabe que quem fez essas calçadas era homem e podia até entender bastante de arquitetura e urbanismo, mas não entendia nada de mulher e muito menos de salto alto.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).

E o seu sapato alto? O que ele diria se pudesse falar? ;)


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Impressões de Paris

Fantástica Cidade Maravilhosa

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Poesia


Tudo bem que as solas do sapato estejam gastas,
Que as bochechas estejam meladas de tantas lágrimas,
Que as rugas brotem com uma rapidez incrível,
Que a sujeira se acumule embaixo das unhas.
Tudo bem que a mão esteja áspera,
Que as costas doam,
Que os joelhos ardam,
Que o joanete exploda,
Que os pés cansem.
Tudo bem que o coração aperte,
Que o olhar se perca,
Que o pensamento devaneie,
Que a vontade seja incontrolável,
Que o sucesso seja passageiro,
Que a felicidade seja efêmera,
Que a tristeza seja intensa,
Que a decepção seja cruel,
Que a perda seja irreparável.
Tudo bem que a incerteza surja,
Que o arrependimento golpeie,
Que o medo ameace,
Que as flores murchem,
Que o desejo se esvaia.
Desde que alguns sonhos se realizem,
os sorrisos sejam sinceros,
o amor seja puro,
o coração seja grande,
a alma seja limpa,
os olhos sejam flamejantes,
o que mais importa?
Eu vivi!

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).

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Impressões de Paris

Alívio

A Beleza das Rugas

sábado, 28 de maio de 2011

O estado de flow

Um caminho tanto para a felicidade pessoal
como para a produtividade empresarial.

Flow é estar completamente envolvido em uma atividade em si. O ego desaparece. O tempo voa. Toda ação, movimento e pensamento seguem naturalmente. Todo o seu ser está envolvido e você está usando o máximo de suas habilidades.”
Mihaly Csikszentmihalyi


Fazer e acontecer. Existem momentos na vida em que a gente se pega envolvido numa tarefa de tal maneira que a intensidade da concentração empregada não nos permite perceber a passagem do tempo. Assim, horas parecem minutos. Às vezes ocorre com você? O pesquisador Mihaly Csikszentmihalyi introduziu esse estado de consciência em sua teoria de flow (fluxo). Os estudos indicam que, nos momentos em que nos encontramos totalmente imersos em uma tarefa, com prazer e envolvimento absolutos, estamos vivenciando a sensação de plena felicidade, em que tudo parece simplesmente fluir.

O estado de flow ocorre quando a pessoa está fazendo algo que é significante para ela mesma, ainda que pareça insignificante para o mundo ao redor. Como exemplo, podemos dizer que uma pessoa envolvida em um passatempo solitário (como montar castelinhos com palitos de dentes) ou uma pessoa atuando em uma atividade empresarial (com grande influência sobre a vida de terceiros) sentiriam a mesma satisfação, desde que estivessem fazendo o que lhes trouxesse prazer e contentamento. Dessa forma, teriam o mesmo benefício, ou seja, receberiam uma recompensa intrínseca, porque a própria fruição do estado de flow seria o prêmio, fruto do que chamamos de atividade gratificante.

Para entender melhor é preciso perceber que, quando estamos dormindo, comendo algo saboroso ou assistindo televisão, embora estejamos obtendo prazer, não estamos vivenciando o flow. Isso porque o estado de flow, para acontecer, necessita que haja dois vértices: o desafio e a habilidade, senão o que ocorre é a apatia. Ou seja, quando estamos nos sentindo desafiados a fazer algo que sabemos que temos competência para fazer, e, finalmente, vamos lá e fazemos, podemos sentir a satisfação provocada pela tríade: MOTIVAÇÃO + CAPACIDADE + AÇÃO. Nesse momento, vivenciamos o estado de flow, que representa mais que prazer, pois o que ocorre, na verdade, é uma mudança de perspectiva – em que o ego desaparece.

Durante o estado de flow, passam despercebidas as sensações de fadiga, fome, dor. Podemos passar horas concentrados na tarefa, apenas vivenciando intensamente o momento, focados no presente, sem reflexão sobre passado e futuro. Apenas o aqui e o agora importam. Empresas em todo o mundo utilizam a teoria do flow para estabelecer um ambiente de trabalho que estimule equipes e faça emergir talentos de funcionários. O autoconhecimento é importante nesse processo, pois é imprescindível que a pessoa saiba do que gosta realmente de fazer, o que a instiga, o que é significante para ela mesma, pois só assim ela poderá se envolver numa tarefa de tal forma a se sentir completamente absorvida por ela, experimentando o flow.

Em que momentos da sua vida você se sente tão pleno, tão realizado que parece gravitar de tanto envolvimento e prazer com uma ocupação? Pode ser jogando bola, escrevendo, criando, trabalhando, enfim, praticando qualquer atividade física ou intelectual. O importante é que tal tarefa represente um desafio para você, mas um desafio para o qual você se sinta competente, habilidoso, preparado.

É no estado de flow que a pessoa dá o melhor de si, vai até aonde é capaz, implementa e esgota todas as suas energias concentradas para aquele único propósito, pois aquilo o instiga, o faz feliz e realizado. Há quem experimente o estado de flow somente em determinados momentos de lazer, quando estão envolvidos em seu passatempo preferido, por exemplo. Entretanto, o ideal seria que cada um pudesse trabalhar numa atividade em que vivenciasse o estado de flow, assim, teríamos equipes mais engajadas e criativas – e uma sociedade mais produtiva. Afinal, a maioria de nós passa a maior parte do tempo de vida no ambiente de trabalho.

A questão é que tal situação hipotética e ideal para se concretizar dependeria do autoconhecimento de cada indivíduo, de oportunidades no mercado de trabalho, adaptações salariais, estímulo à criatividade e desenvolvimento da autonomia para tomada de decisões. Se fazer o que se gosta é um caminho para a felicidade, então, fazer o que nos permite vivenciar o estado de flow durante ao menos uma parte do tempo em que passamos no trabalho é um tapete vermelho estendido em direção ao sucesso. Não necessariamente o sucesso entendido como reconhecimento público, mas percebido como a visão que a pessoa tem de si mesma no sentido de se sentir realizada e grandiosa, produzindo algo que dá sentido à própria existência.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).


Leia mais sobre este assunto em: Café Coach  Arata Academy  Tomás Garcia  Renato Miranda  Wikipédia

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Paz Interior 
 
Edelweiss

domingo, 10 de abril de 2011

Conto

O papel deles


Ando pelas ruas do Centro do Rio. Estou irritada. Um, dois, três, quatro... dez! Não, não estou contando até dez para ver se consigo controlar meu nervosismo. Estou contando o número de pessoas distribuindo panfletos pelas calçadas. Em uma calçada contei dez. Comecei o meu trajeto cotidiano respondendo “não, obrigada” a cada mão que me oferecia as filipetas barulhentas. Tec, tec, tec, tec... Por que os mocinhos chacoalham a papelada, batem uns papeizinhos contra os outros fazendo o irritante barulhinho? Tudo bem que o barulho não é alto. Em princípio, é até inaudível. Mas conforme o cidadão continua seu itinerário e esbarra não com um, mas com dez, vinte, trinta mocinhos e mocinhas fazendo a mesma batida “tec, tec, tec”, o discreto barulhinho começa a invadir os tímpanos de tal forma que o crânio chega a latejar de nervoso como se ouvisse um tambor repetindo o refrão horas a fio.

Onze, doze. Continuei a ser delicada e, gentilmente, eu dizia “não, obrigada”. Isso era o que eu dizia, mas o que eu pensava não era bem assim: - Puxa vida! Por que tanto querem que eu apanhe esses bagulhos? Para logo em seguida jogar no lixo? Ou fazer como muitos mal-educados que jogam no chão mesmo? Que tanto é que me empurram promoções, créditos, dinheiro fácil? Haja mão pra segurar tanto papel! Eu poderia montar um grande painel no fim do dia juntando cada pedacinho que querem me dar pelo caminho.

Vieram outros. Treze, quatorze... dezessete. Impaciente, comecei a desviar dos seguintes. Eles pareciam não se importar em ser ignorados, como se estivessem acostumados a qualquer tipo de reação. Na mesma proporção em que minha tolerância ia diminuindo, o extrapolar de limites deles aumentava: começavam a enfiar o braço diante de mim, como se eu fosse pegar a papeleta de qualquer maneira. Querem que o caminhante abra as mãos custe o que custar. Estendem o braço, chacoalham as mãos, aparentemente, tentando encaixar a filipeta sob as axilas dos desavisados!

Começo a caminhar apressadamente, na tentativa de fugir de tamanha perseguição. Vinte, vinte e um, vinte e dois... Depois de tanta insistência, até que eles mereciam uma chance! Talvez eu pegasse o panfleto seguinte. Talvez eu até o lesse. Quem sabe até o levasse em consideração. Quiçá pediria outro! O pior é que, com sacolas e livros em ambas as mãos, não posso estender os braços para atender às insistentes súplicas dos rapazes e moças que não desistem de me apontar os braços e oferecer-me os barulhentos papéis – neste momento, o tec, tec, tec já soa como um TUM, TUM, TUM enlouquecedor. Em minhas mãos ocupadas, não sobra espaço entre meus dedos nem para mais um fio de cabelo, ainda assim, os inexoráveis trabalhadores colocam o braço diante de mim, provocam um esbarrão e pensam que encontrarão uma fórmula secreta capaz de permitir o encaixe do tão importante papel entre o meu anelar e o mindinho. Ou talvez imaginem que o sujeito, de maneira sobrenatural, fará brotar um terceiro braço!

Trabalhando com entusiasmo e energia, a sincronia dos trabalhadores é perfeita. Batem papel contra papel no mesmo ritmo, no mesmo tom, fazendo “tec, tec, tec, tec”. Estendem o braço numa mesma coreografia, dançando no grande teatro formado pelas calçadas do Centro do Rio de Janeiro. O público é imenso, lota as praças, as esquinas, as retas e as curvas. Não há distinção entre platéia e camarote. Onde quer que o espectador esteja posicionado, por onde quer que esteja passando, tornar-se-á também protagonista, recebendo o seu papel – com ou sem trocadilho.

Todos se irritam, ninguém reclama. Ser incomodado pelos papeizinhos batucantes já se tornou algo normal, que faz parte do dia-a-dia do carioca que transita pelo Centro. Como tudo na vida, a gente se acostuma. Mas a gente não se conforma. Por dentro, aquele barulhinho irritante vai transformando nosso rosto ameno numa cara carrancuda. E se os panfletinhos desaparecessem de uma hora para a outra? Caminhar pelo Centro se tornaria sem graça não fosse o fundo musical “tec, tec, tec, tec”? A coreografia ensaiada pelos cerca de dez dançarinos de cada quadra faria falta nas caminhadas pelo comércio? Quem sentiria falta? Quem notaria a diferença? Certamente, se não fossem os tais, estas linhas não poderiam ser escritas e esta sua leitura, meu caro, não estaria sendo feita. E quem se importaria? Eu? Você? Quem sabe? Não se dá falta daquilo que não se conhece.

Chega de prosa. Vencida pelo cansaço, resolvi, não sem dificuldade, pegar um panfleto. Aceitei a minha sina. - O que têm vocês pra me dizer de tão interessante? - gritei em pensamento. – O que tem escrito neste aqui, afinal? Ah, sim... Quer saber? Eu poderia revelar agora, mas isso já dá uma outra história...

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).

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Um conto para um fim de semana chuvoso... - Tudo planejado

Um conto em homenagem ao Rio de Janeiro, pelo aniversário da cidade

Artigo: Michael Jackson além da música

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Uma reflexão sobre o livro 3096 Dias, de Natascha Kampusch, a austríaca que foi sequestrada e permaneceu em cativeiro dos 10 aos 18 anos, passando toda a adolescência isolada do mundo.




“A prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência.” Mahatma Gandhi

3096 Dias é um livro que nos prende em um cativeiro. Do início ao fim, não conseguimos escapar. É uma história intensa, dolorosa e cruel, que nos deixa sem ar. Fiquei presa, mas eu só precisei de seis dias, entre uma e outra tarefa cotidiana, para terminar a leitura e poder respirar aliviada novamente. Já a autora, precisou de 3096 dias para conseguir se livrar das amarras externas e internas às quais foi imposta. Depois de oito anos e meio presa a um sequestrador, conseguiu fugir – e o mais impressionante: sem enlouquecer. Repleta de juízo, discernimento e olhar crítico sobre tudo o que se passou e sobre a sociedade em que vivemos, Natascha Kampusch nos leva a uma viagem às nossas verdades ocultas, aquelas que muitas vezes não sabemos enxergar em nós mesmos.

Antes de tudo, 3096 Dias é uma história sobre a natureza humana, na sua mais profunda essência. Para Kampusch, o sequestrador não é um monstro, mas uma criação, uma consequência e até mesmo um reflexo da sociedade. Mais que isso: ele é um de nós. A idéia é ousada e desce a seco. Mas Natascha fundamenta sua teoria e nos convida a ponderações. A autora, que se recusa a continuar sendo colocada no papel de vítima, refuta a ideia de que tenha sofrido da Síndrome de Estocolmo - um estado psicológico em que a vítima busca se identificar afetiva e emocionalmente com seu algoz como mecanismo de defesa e proteção. Kampusch critica o maniqueísmo e contesta a existência de pessoas boas e pessoas ruins, o bem lutando contra o mal, enfim, ela acredita nas nuances, vê que nem tudo é mau em uma pessoa que comete uma má ação e nem tudo é bom em uma pessoa que faz boas ações. Muito mais lúcida é a autora em sua avaliação mais abrangente do que aqueles que, num julgamento simplista, tentam reduzir seus questionamentos a uma síndrome.

A autora acorda o leitor para o fato de que não existe um mundo divido entre pessoas boas e más e que essa é apenas uma ilusão criada para nos dar o conforto de estar no primeiro grupo. Assim, precisamos personificar o mal, e o mal precisa ser tão mal que não guarde nenhuma semelhança conosco. Com esse argumento ela encontra justificativa para que os noticiários após sua fuga tenham sido tão sensacionalistas, incluindo dados mentirosos sobre as crueldades do sequestrador, como se tudo o que ele fez não fosse o suficiente, como se ele tivesse de ser ainda pior para se distanciar completamente da imagem que temos de nós mesmos. Entre as truculências divulgadas, estavam as notícias do sequestrador como um explorador sexual, sendo que ela afirma que, em todos os anos do cativeiro, não sofreu violência sexual.

Mas, o mais importante é que este é um livro que nos faz ficar perplexos diante das diversas facetas do ser humano - que é capaz de resistir, enfrentar e reagir mesmo imerso na mais dura realidade. Um criança de 10 anos de idade é sequestrada, mantida em cativeiro abaixo da terra, no subsolo, no porão, como que enterrada viva. É trancada num cubículo sem janelas, vendo-se sozinha e indefesa ao apagar das luzes. Dias seguidos sob a luz constante de uma lâmpada ininterruptamente acesa; dias seguidos na escuridão, com a única lâmpada mantida apagada por dias a fio, para transtornar o ritmo biológico, atrapalhar o sono, a fome, o raciocínio. Dias inteiros sem se alimentar. Racionamento de água e comida até a subnutrição. Trabalho duro e forçado. Espancamentos. Humilhações verbais e físicas. Ser subjugada até o limite da morte. Natascha Kampusch viveu os 8 anos e meio de cativeiro sob o olhar e vigilância constante do sequestrador. Dos 10 aos 18 anos. Passou toda a adolescência tendo o sequestrador Wolfgang Priklopil como o único ser-humano de sua convivência. Como alguém que passou por tão severas privações pode continuar caminhando firme e forte em direção a um futuro melhor? A esperança permaneceu no coração de Natascha por todo aquele tempo, entre quedas e recuperações. Mesmo entre castigos, sofrimento físico e psicológico, Natascha manteve-se confiante e muitas vezes resistiu às ordens do sequestrador, dando voz à sua própria vontade. E ainda usou de sua inteligência para, algumas vezes, manipulá-lo e obter o mínimo necessário a sua sobrevivência e a sua estabilidade emocional.

3096 Dias é um livro sobre a força do ser-humano, a coragem sobrehumana que temos e que vem à tona quando nos encontramos diante de situações que pensamos não ser capazes de suportar. Natascha prova que somos capazes de muito além daquilo que imaginamos. Aguentar dores e tristezas intensas, superar mágoas e rancores profundos - tudo é possível quando ainda há vontade de viver e de ser feliz. Acreditando que um dia encontraria a sua felicidade de novo, Natascha se apegou aos parcos momentos de pequenas felicidades e se distanciou de si mesma nos momentos mais lamacentos. Via-se de fora, como se o sofrimento estivesse sendo acometido a uma outra pessoa que não ela - artifício da mente para suportar a amargura e a dor pungente. A mente humana é capaz de feitos incríveis, podemos criar e recriar a nossa realidade. Quantas pessoas sentem ou já sentiram medo do escuro? Enquanto crianças fugiam para a cama da mãe no meio da noite, uma pequena menininha chamada Natascha Kampusch pôde suportar estar num lugar estranho, tendo sido jogada lá por um homem desconhecido, tendo de dormir e acordar na completa escuridão sem sua mãe para abraçar. Desesperou-se, mas se aguentou. Sem escolha, teve de se sustentar. Usou de sua imaginação para passar as horas. Apegou-se a lembranças queridas para transportar-se no espaço e no tempo. Profundos mistérios guardam a mente e a alma humanas! Não sabemos onde se esgota a sua imensa capacidade.

A garotinha de rosto angelical que se fez mulher com o passar dos anos no cativeiro nos faz refletir sobre nós mesmos. Depois de alguns anos de sofrimento extremo, Natascha teve algumas oportunidades de escapar, mas não o fez. Somente depois de completar a maioridade deu o passo definitivo e necessário à sua liberdade. Natascha fala que, depois de um tempo, a prisão psicológica tinha muros muito mais intransponíveis do que os do cativeiro. Até o ponto de o sequestrador colocá-la do lado de fora da casa e dizer: "- Vá". E ela não deu sequer um passo. A prisão psicológica à qual o sequestrador a submeteu era formada por muros demasiado altos, aos quais ela não tinha forças para ultrapassar. E Priklopil sabia disso. A atitude de colocá-la diante da porta era não mais que uma provocação: ele queria ter certeza de que seu experimento havia dado certo. O sequestrador havia construído na mente daquela garotinha muros tão altos que a fuga se tornava algo cada vez mais distante e irreal. Muros psicológicos construídos com base na crença de que o mundo lá fora não a queria de volta, os pais estariam felizes por não tê-la mais por perto, ela não era boa o suficiente para nada, ela não servia, ela não prestava, então, tinha de ser grata ao homem que a criava em cativeiro. Ideias incutidas na mente da menininha por aquele homem em suas atitudes perversas.

Mas, Natascha faz questão de ressaltar que nem tudo era brutalidade naquele homem. Em sua mente doentia, ainda havia espaço para pequenas demonstrações de carinho e atenção. Pouco a pouco, ele transparecia suas frustrações com sua própria vida, sua solidão, seus próprios medos e desesperos particulares. De certo modo, ele também se sentia sozinho, isolado, perdido, abandonado à própria sorte, como se o mundo não fosse receptivo a ele. Talvez não tivesse sido amado na infância. Talvez a sociedade não o olhasse de perto o suficiente para que ele próprio se sentisse inserido num contexto. De fato a sociedade não o via, não o percebia, não lhe dava a devida atenção, tanto que nesses anos todos nunca um vizinho, um amigo, um familiar ou um colega de trabalho, nunca ninguém percebeu algo de estranho no olhar, nas atitudes, na angústia daquele homem. Ou, quem sabe, talvez tivessem afirmado: “- Não é problema meu”.

A sociedade cria muito mais monstros do que destrói. Se era doente, necessitava de tratamento. Se cresceu sendo rejeitado, talvez um carinho e um amor o tivessem salvado e mudado seu destino e o destino de quem mais tarde atravessou o seu caminho. Se não tinha salvação, ao menos um olhar mais atento o teria percebido e descoberto seu crime. Estamos todos preocupados demais com nossas próprias vidas, nossos próprios interesses. Ocupados demais para olhar para o lado e perceber um olhar aflito. Damos “bom dia” aos nossos vizinhos com tanta indiferença que a distância entre nossas mãos parece ser um obstáculo intransponível. Quando foi que começamos a abrir abismos entre nós? Quando foi que começamos a construir nossos próprios cativeiros?

A porta da liberdade se colocou diante de Kampusch algumas outras vezes, anos antes de sua fuga, mas ela permaneceu trancada em si mesma. Quantos de nós já não agimos assim? Conseguimos perceber um caminho para nossos sonhos, uma luz no fim do túnel, um futuro melhor, um passo importante que temos de dar em direção à nossa liberdade, mas temos medo ou não temos tempo para nos dedicar ao propósito, ou arranjamos desculpas para não fazê-lo, e adiamos a nossa empreitada. Não só a Natascha, mas nós também adiamos a nossa fuga. A porta se põe aberta diante de nós e nós apenas a assistimos estáticos, vendo-a bater em seguida. Perdemos a oportunidade. Perdemos nossa grande chance. Teremos que suportar mais um pouco, lutar mais um pouco e tentar ser mais fortes da próxima vez.

Quantas vezes na vida não nos sentimos assim? Quem nunca se sentiu impotente? Algo de que necessitamos desesperadamente apresenta-se diante de nós, mas não nos sentimos preparados e fortes o suficiente internamente para alcançar. Um sonho, um objetivo, um desejo. E continuamos inertes. Sabemos que precisamos parar de procrastinar e que o momento de agir é aqui e agora. Sabemos. Mas o que nos impede? Nossos muros internos. Um dia Natascha amadureceu suas ideias e, em seu despertar, pôde enxergar esse muro com tanta clareza que decidiu que seria necessário destruí-lo. Teve consciência de que havia sido manipulada e forçada a se sentir reduzida a um nada. Teve ânimo para emergir. Sentiu-se forte para derrubar os muros que haviam sido construídos ao longo de tantos anos. Foi esfarelando os muros internos, buscando força interior para irromper para a vida, pois continuar no cativeiro não seria mais possível. Chegou a um ponto em que se tivesse de passar a vida inteira confinada, preferiria a morte. Nastascha escolheu a vida. E conquistou sua liberdade. Vestiu-se de um esforço colossal, terminou de retirar o último tijolo do titânico muro interno e, na oportunidade seguinte, simplesmente, fugiu.

Ao escapar, encontrou um mundo repleto de estímulos, aos quais já havia se desacostumado. E teve de reaprender a viver do lado de fora, reaprender a conviver com outras pessoas, depois de tanto tempo conhecendo somente um único ser humano, cuja mão que lhe maltratava e prendia era a mesma que lhe fornecia alimento. Aquele que lhe havia privado de uma vida normal era o mesmo de quem dependia a continuidade de sua vida. Com todo esse dualismo Natascha teve de lidar, na fase mais sinuosa da vida humana: a adolescência.

Mas, depois da fuga, já fora do confinamento, Nastacha se viu em novo cativeiro. Descobriu que o mundo não é um lugar para se viver livre. Entendeu que liberdade é algo que não existe, não da forma como ela imaginou. Estamos todos nós presos em um imenso cativeiro, que às vezes parece mais apertado, às vezes mais amplo. Sendo sufocados por olhares críticos. Obrigados a nos conduzir desta ou daquela forma publicamente, diante dos olhares desconfiados ou arrogantes dos vizinhos. Natascha, mesmo que contra a sua própria vontade, tornou-se uma pessoa pública. No dia de sua fuga, a imprensa ocupou todo o pátio da delegacia e esperava por ela. Ela seria notícia em todo o mundo. Do lado de fora, teve de se tornar novamente prisioneira, protegendo-se da curiosidade excessiva do público e da mídia. Desta vez, não seria mais possível fugir. Para aonde ir? A imprensa a acompanhava em seu encalço. Tornou-se novamente refém. Refém como todos nós, por vezes, somos: da inveja, da indiscrição alheia, da fofoca, do medo de sermos julgados, da superexposição. Refém dos preconceitos, das regras sociais e até mesmo da maldade. Não da maldade personificada, encarnada pela figura do sequestrador - o “mau”. Mas da maldade que existe dentro de cada pessoa. A maldade que não se vê ao olhar no espelho, a que fica encoberta. As pequenas maldades do dia-a-dia, pecadinhos pequenos e confessáveis, mas que às vezes afligem o nosso próximo. Natascha nos mostra que, acima de tudo, somos reféns da hipocrisia.


É tempo de derrubar muros

O crime contra Natascha Kampusch não é único na história. Como ela, quantas outras crianças e adultos podem estar sofrendo neste momento o mesmo horror? No sequestro e cárcere de Kampusch, não houve cúmplices. Priklopil agiu sozinho. Não só de gangues vive o crime. Priklopil possuía vizinhos. Ninguém desconfiava. Ele tinha um emprego. Ninguém notou nada de errado. Ele ia ao shopping, ele viajava, ele fazia compras, ele tinha um amigo, ele tinha uma mãe. Ninguém o olhou com a devida atenção, senão poderiam ter reparado que algo estava fora dos eixos. Crueldades terríveis podem ser evitadas ou ter sua continuidade interrompida se aprendermos a olhar no nosso entorno com mais cuidado. Se a polícia sozinha não pode desvendar todos os crimes, nós precisamos nos despir de nossas vendas e olhar o nosso próximo olho no olho, não mais superficialmente, mas olhar no fundo da alma. Conhecer nossos vizinhos. Conhecer as pessoas que nos cercam. Conhecer nossos colegas. Olhar com atenção, carinho, amor, compaixão, solidariedade, amizade, como irmãos no mesmo barco do mundo. Ao olhar, podemos ajudar alguém que notamos precisar de um simples auxílio. E, numa perspectiva mais ampla, podemos vir a perceber alguém que precisa de uma intervenção maior. Prestar atenção no próximo é uma atitude para o bem e proteção da nossa própria família, para o bem de toda a comunidade e de todo o mundo.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).

Serviço:
Livro: 3096 Dias
Autora: Natascha Kampusch
Editora: Verus - Grupo Record
1ª Edição / Ano: 2011/ 225 páginas
Preço médio: R$ 28,00

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Um conto em homenagem ao Rio de Janeiro, em comemoração ao aniversário de 446 anos da cidade.


                            

Fantástica Cidade Maravilhosa

Hoje é uma noite quente de verão do ano de 2087. Resolvi escrever, porque estou tendo uma noite inquietante. São três horas da madrugada agora, mas preferi levantar e desabafar um pouco aqui. Fiquei revirando de um lado para o outro na cama, sendo sugado por meus pensamentos - lembranças da minha infância que vinham em flashes. Lembro-me nitidamente como se fosse ontem, mas já faz muito tempo, eu sei. Ontem foi meu aniversário, completei 83 anos. De presente, recebi da minha filha um embrulho curiosamente deteriorado pelo tempo e, por orientação dela, só pude desembalar quando cheguei em casa. Eu estava sozinho quando abri o pacote. Dentro havia a peça que faltava no quebra-cabeça da minha história. Quem mais poderia saber do meu segredo? Só eu e o meu falecido avô tínhamos conhecimento sobre o que havia acontecido naquele verão de 2011. Havia junto do presente uma carta datada de março daquele ano. Nela, vovô dizia que ele estava completando 83 anos e que, quando eu chegasse a essa mesma idade, se tivesse assim a mesma sorte, eu deveria receber o presente que ele naquela data embrulhava – a peça que me faltava. Ele usaria dos meios possíveis para que o pacote chegasse em minhas mãos na data programada, dali a 76 anos.

Por trás das minhas mãos enrugadas e da minha memória já um pouco gasta, há ainda uma alma de menino. Foi por isso que logo pude viajar no tempo, divagando em minha mente, com a mesma inocência das crianças. Ao olhar o presente que recebera depois de tanto tempo, as imagens daquele longínquo verão voltaram diante de mim. As coisas já estão bem diferentes por aqui hoje. Toda essa modernidade não era nem de longe sonhada naqueles anos. Mas a simplicidade em que vivíamos ainda me causa uma profunda nostalgia. Pensávamos que estávamos desfrutando de muitos avanços tecnológicos. As crianças brincavam horas a fio ao computador e na Internet, aproveitando muito pouco as delícias de viver numa cidade como o Rio de Janeiro. Mas ainda assim, nada se compara ao modo como os jovens vivem hoje. As ruas estão tão vazias... as relações se virtualizaram cada vez mais.

Era o começo de 2011 e nos dois primeiros meses do ano eu estava de férias. Eu completava sete anos e meu avô me levara para visitar o Cristo Redentor pela primeira vez. Aquela estátua que já fazia parte habitual da minha vida, nas idas e vindas pelas ruas do Rio, agora seria vista de pertinho. Ele disse que perante a estátua, que se faria enorme diante de mim, eu poderia fazer um pedido. Nunca havia ouvido falar em tal possibilidade, talvez ele mesmo tivesse inventado. O fato é que eu já estava ansioso, pois sabia exatamente o que queria e tinha certeza de que meu desejo seria realizado. Ao olhar para cima e ver o Cristo Redentor de braços abertos fechei os olhos e pedi com toda a força do mundo: - Quero ter super poderes! No fundo, o que eu mais queria era aproveitar o Rio de janeiro a janeiro. Eu era criança, então, é claro que os super poderes me ajudariam nessa tarefa!

Naquele mesmo dia eu já pude experimentar as forças sobrenaturais que me acompanharam durante todo aquele verão, até o Carnaval. De repente, eu me tornei invisível e só o meu avô conseguia me ver. Não havia problemas, ele sabia e entendia tudo o que estava acontecendo. Pelo que me contara, quando ele era criança, teria tido a mesma experiência. Quando terminei de fazer o meu pedido, abri os olhos e, de repente, por mágica, eu estava flutuando acima do Corcovado, indo em direção à estátua do Cristo. Quando cheguei junto do Cristo Redentor estiquei a mão e pude tocá-lo, ele não era mais feito de pedra, estava macio. Dei-lhe um forte abraço e ele me apertou com muita ternura, num estreito enlace, afagando-me intensamente. Era um abraço tão fofo, tão gostoso, senti-me tão protegido e abençoado! Saí dali com muita coragem e disposição para o meu dia de aventuras. A estátua do Cristo Redentor me pegou no colo e me levou, então, nos seus braços de volta até o Pão de Açúcar, deslizando sob os cabos do bondinho, como se fosse uma espécie de tirolesa.

Ao chegar do outro lado, o Redentor colocou-me sentado sobre o Pão de Açúcar. Olhei para o pão doce gigantesco debaixo de mim e pude tirar-lhe um pedacinho. Estava macio e o aroma era de pão fresquinho. O pão gigantesco estava quente, não sabia se por causa do sol escaldante ou se porque tinha acabado de sair do forno. Logo entendi que meus super poderes transformavam tudo o que estava ao meu redor na mais pura delícia que eu pudesse imaginar. Era uma fantástica cidade feita só pra mim! A Cidade Maravilhosa recriada a partir da minha própria imaginação! Mas eu não podia usufruir de tudo isso sozinho... Eu sentia uma imensa vontade de compartilhar com os outros dessa mesma alegria!

Foi então que tive uma idéia e fui voando até a praia do Arpoador. Já era fim de tarde e logo aconteceria ali o famoso espetáculo do pôr-do-sol. Esperei quietinho vendo o sol se esconder por detrás do Morro Dois Irmãos, deixando rastros no céu de uma beleza estonteante, misturando variados tons de laranja, rosa e amarelo. Enquanto a platéia de banhistas se distraía com a contemplação e alguns aplaudiam enternecidos, fui furtivamente até onde o sol se escondia, por trás dos Dois Irmãos e peguei aquele imenso balão de fogo emprestado pra mim. Os Dois Irmãos não se incomodaram, já haviam brincado bastante com o grande sol e logo iriam dormir. Vim trazendo o sol em minhas mãos, carregando-o por um fio como se fosse um grande balão de gás. Enorme, brilhante, o meu balão era o mais lindo do mundo!

Saí dali o mais depressa que pude e fui correndo pelas ruelas das comunidades mais carentes da minha cidade e pelos hospitais, iluminando a vida dos que mais necessitavam. Fui com o sol distribuindo um pouco de calor e luz por onde passava. A energia solar era estendida a todos pelo caminho. O grande balão dourado flutuava sobre mim, amarrado em minha mãzinha tão frágil. Parecia repleto de gás hélio, pois estava tão leve! Fui correndo, dançante, sapateando por todos os trajetos que me ocorriam, levando a luz brilhante aos acometidos pelo medo, pelo sofrimento, pela pobreza e pela injustiça. O balão dourado ia distribuindo e renovando a alegria e a esperança dos que por aqueles caminhos estavam. Quando terminei, fui devolver a grande esfera aos Dois Irmãos, que já haviam dormido e estavam descansados para um novo dia que viria pela frente. Tão simpáticos esses dois cariocas! Acabamos ficando amigos.

Gostei tanto da experiência que voltei lá muitas vezes para buscar o sol, e depois de cumprida a tarefa o devolvia, para que pudesse nascer um novo dia. Mas às vezes eu deixava o sol descansar. Nesses dias, eu esperava ficar bem de noitinha. E, então, era a lua que eu buscava. Nas noites de lua crescente ou minguante, eu escorregava em suas curvas. Enquanto eu brincava, conversávamos sobre tudo. Numa certa noite de lua cheia, ela me contou que também era criança e confessou que não entendia por que sendo ela também redonda e sabendo girar, não podia se divertir como uma bola! Naquela noite mesmo, fiquei tão comovido com o desejo enluarado que carreguei a lua de surpresa. Para que ninguém desse pela falta da lua no céu, pedi a uma amiga nuvem que ficasse bem posicionada, assim, pensariam que a lua estava encoberta. Fui quicando a lua pelo céu, desci até o Rio de Janeiro e a levei para o Maracanã. Lá no grande estádio brincamos até quase o amanhecer, quando tive de levá-la de volta para o seu lugar. Prometi que a visitaria ao anoitecer e a buscaria para brincar com outros meninos da minha idade.

Na noite seguinte, como prometido, eu levei a lua cheia para passear por diversos campos de futebol em comunidades e condomínios, praças e clubes da Cidade Maravilhosa. Eu chegava com a lua disfarçada de bola e a arremessava dentro dos campos e das quadras para os meninos que estavam jogando futebol. Logo eles se animavam com aquela bola prata brilhante, distinta, reluzente. Sentiam que havia algo de especial nela. E a lua se divertia tanto! Rolava por entre as pernas dos meninos e gargalhava porque sentia cócegas a cada pontapé. A lua vibrava a cada chute a gol e não sabia nunca para qual time torcer. Aqueles que chutaram aquela lua-bola-encantada levaram um pouco do seu brilho para a vida e são eles os nomes que fizeram grande sucesso no futebol carioca. Havia alguma espécie de feitiço na bola-lua, e ela fazia brilhar todo aquele que com ela fizesse um gol. Os grandes craques das décadas seguintes foram aqueles mesmos que brincaram com a bola brilhante das noites de lua cheia, sem saber que a bola era lua. E que a lua brincava, também se divertia, gostava de ser bola e retribuía a alegria.

Depois de uma noite dessas, voltando pra casa, avistei um barquinho, saindo da Marina da Glória. Lá fui eu passear um pouco de barco, sentir o vento soprar em meus cabelos. Invisível, eu entrava nos lugares e ia descobrir o que havia de mais gostoso para se fazer. Sentei-me perto da proa e fui navegando, os pensamentos iam e vinham, como as ondas do mar. Eu relaxando, aproveitando, já no amanhecer, o sol de verão no límpido céu azul. Olhava o imenso mar, passeava com os olhos pelas silhuetas das montanhas abraçando a cidade do Rio. Embevecido por ser morador daquele lugar de sonho, seguia eu, cidadãozinho em formação, amando a minha casa, a minha morada, a minha Cidade Maravilhosa. Tornava-me um carioca apaixonado, dia após dia, olhando deslumbrado como um turista que vê pela primeira vez a majestade imponente da beleza natural que ali reside. Navegando pelas margens da cidade, eu sentia a magia que é ver, visitar ou viver no Rio. Eu estava absorto em meus pensamentos, quando, de súbito, começou a cair uma chuva fina, mas ainda fazia sol. Gotas cristalinas se juntavam ao mar. Formou-se um gigantesco arco-íris que cobria toda a extensão da Marina da Glória até a praia de Botafogo, passando pelo Flamengo.

Abandonei a embarcação e fui voando até o princípio do arco-íris. Subi alegremente pelas faixas coloridas e fui escorregando até o outro lado. Eu subia e descia. Ia e vinha. Escorregando e passeando pelas cintas de luz. Escorregava até o mar e dava um mergulho. Depois voltava para o arco-íris e corria até o topo. Descia escorregando de ponta-cabeça e depois retornava para brincar mais um pouco. Fiz isso inúmeras vezes até que a chuva foi passando e o arco íris se desmanchou. Então, já exausto, fui para casa, como muitas outras vezes em que, cansado depois de um dia tão colossal, ia dormir. Mas, às vezes, extasiado com tantas aventuras extraordinárias, não conseguia cair no sono e passava a noite em claro, já inventando moda para o dia seguinte.

Aproximava-se o fim das férias e logo chegou o Carnaval. O Sambódromo estava repleto. Pessoas de todos os tipos, todas as idades, todas as classes. Todas se misturavam, sambavam e cantavam num só ritmo. A magia era tanta que se fundiu à magia que eu carregava desde o início do verão. Aquele feitiço foi cedendo ao ritmo da bateria das escolas que foram chegando e sacudindo tudo em volta. Não que a energia estivesse sendo suprimida, mas espalhada, distribuída, por tudo e por todos, para que um pouco dela fosse fazer parte de cada um. Conforme as escolas de samba chegavam para desfilar e também conforme os blocos de rua iam passando, a energia dos super poderes ia sendo espalhada por toda a população, distribuída através da música, viajando por meio dos sons a todos os cariocas - de nascença ou de coração - que estavam espalhados por todo o mundo.

Hoje, nesta noite quente de verão do ano de 2087, fiquei horas passeando por essas lembranças, antes que tivesse coragem de abrir o tão misterioso pacote. Mas, finalmente, minhas mãos envelhecidas desfazem o embrulho que recebi de presente. Quando eu o abro, uma luz magnífica sai de dentro dele e invade todo o ambiente, resplandecendo, atravessando as janelas, de dentro para fora. Tapo com a mão um pouco da claridade e posso ver que, na carta que acompanha o presente, está escrito algo magnífico: posso fazer um novo pedido. Com o mesmo coração infantil de sempre, acreditei com toda a minha força de velho menino. Fechei os olhos e desejei receber de novo super poderes por mais um verão e carregar comigo o balão-sol e a bola-lua para sempre. O Pão de Açúcar que me espere... não vejo a hora de devorá-lo mais uma vez!

Autoria:

Ilustração: Chico Azevedo

Todos os direitos autorais reservados.


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Alívio

domingo, 16 de janeiro de 2011

Nós


O problema não somos nós. O problema são os nós.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).