quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Uma reflexão sobre o livro 3096 Dias, de Natascha Kampusch, a austríaca que foi sequestrada e permaneceu em cativeiro dos 10 aos 18 anos, passando toda a adolescência isolada do mundo.




“A prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência.” Mahatma Gandhi

3096 Dias é um livro que nos prende em um cativeiro. Do início ao fim, não conseguimos escapar. É uma história intensa, dolorosa e cruel, que nos deixa sem ar. Fiquei presa, mas eu só precisei de seis dias, entre uma e outra tarefa cotidiana, para terminar a leitura e poder respirar aliviada novamente. Já a autora, precisou de 3096 dias para conseguir se livrar das amarras externas e internas às quais foi imposta. Depois de oito anos e meio presa a um sequestrador, conseguiu fugir – e o mais impressionante: sem enlouquecer. Repleta de juízo, discernimento e olhar crítico sobre tudo o que se passou e sobre a sociedade em que vivemos, Natascha Kampusch nos leva a uma viagem às nossas verdades ocultas, aquelas que muitas vezes não sabemos enxergar em nós mesmos.

Antes de tudo, 3096 Dias é uma história sobre a natureza humana, na sua mais profunda essência. Para Kampusch, o sequestrador não é um monstro, mas uma criação, uma consequência e até mesmo um reflexo da sociedade. Mais que isso: ele é um de nós. A idéia é ousada e desce a seco. Mas Natascha fundamenta sua teoria e nos convida a ponderações. A autora, que se recusa a continuar sendo colocada no papel de vítima, refuta a ideia de que tenha sofrido da Síndrome de Estocolmo - um estado psicológico em que a vítima busca se identificar afetiva e emocionalmente com seu algoz como mecanismo de defesa e proteção. Kampusch critica o maniqueísmo e contesta a existência de pessoas boas e pessoas ruins, o bem lutando contra o mal, enfim, ela acredita nas nuances, vê que nem tudo é mau em uma pessoa que comete uma má ação e nem tudo é bom em uma pessoa que faz boas ações. Muito mais lúcida é a autora em sua avaliação mais abrangente do que aqueles que, num julgamento simplista, tentam reduzir seus questionamentos a uma síndrome.

A autora acorda o leitor para o fato de que não existe um mundo divido entre pessoas boas e más e que essa é apenas uma ilusão criada para nos dar o conforto de estar no primeiro grupo. Assim, precisamos personificar o mal, e o mal precisa ser tão mal que não guarde nenhuma semelhança conosco. Com esse argumento ela encontra justificativa para que os noticiários após sua fuga tenham sido tão sensacionalistas, incluindo dados mentirosos sobre as crueldades do sequestrador, como se tudo o que ele fez não fosse o suficiente, como se ele tivesse de ser ainda pior para se distanciar completamente da imagem que temos de nós mesmos. Entre as truculências divulgadas, estavam as notícias do sequestrador como um explorador sexual, sendo que ela afirma que, em todos os anos do cativeiro, não sofreu violência sexual.

Mas, o mais importante é que este é um livro que nos faz ficar perplexos diante das diversas facetas do ser humano - que é capaz de resistir, enfrentar e reagir mesmo imerso na mais dura realidade. Um criança de 10 anos de idade é sequestrada, mantida em cativeiro abaixo da terra, no subsolo, no porão, como que enterrada viva. É trancada num cubículo sem janelas, vendo-se sozinha e indefesa ao apagar das luzes. Dias seguidos sob a luz constante de uma lâmpada ininterruptamente acesa; dias seguidos na escuridão, com a única lâmpada mantida apagada por dias a fio, para transtornar o ritmo biológico, atrapalhar o sono, a fome, o raciocínio. Dias inteiros sem se alimentar. Racionamento de água e comida até a subnutrição. Trabalho duro e forçado. Espancamentos. Humilhações verbais e físicas. Ser subjugada até o limite da morte. Natascha Kampusch viveu os 8 anos e meio de cativeiro sob o olhar e vigilância constante do sequestrador. Dos 10 aos 18 anos. Passou toda a adolescência tendo o sequestrador Wolfgang Priklopil como o único ser-humano de sua convivência. Como alguém que passou por tão severas privações pode continuar caminhando firme e forte em direção a um futuro melhor? A esperança permaneceu no coração de Natascha por todo aquele tempo, entre quedas e recuperações. Mesmo entre castigos, sofrimento físico e psicológico, Natascha manteve-se confiante e muitas vezes resistiu às ordens do sequestrador, dando voz à sua própria vontade. E ainda usou de sua inteligência para, algumas vezes, manipulá-lo e obter o mínimo necessário a sua sobrevivência e a sua estabilidade emocional.

3096 Dias é um livro sobre a força do ser-humano, a coragem sobrehumana que temos e que vem à tona quando nos encontramos diante de situações que pensamos não ser capazes de suportar. Natascha prova que somos capazes de muito além daquilo que imaginamos. Aguentar dores e tristezas intensas, superar mágoas e rancores profundos - tudo é possível quando ainda há vontade de viver e de ser feliz. Acreditando que um dia encontraria a sua felicidade de novo, Natascha se apegou aos parcos momentos de pequenas felicidades e se distanciou de si mesma nos momentos mais lamacentos. Via-se de fora, como se o sofrimento estivesse sendo acometido a uma outra pessoa que não ela - artifício da mente para suportar a amargura e a dor pungente. A mente humana é capaz de feitos incríveis, podemos criar e recriar a nossa realidade. Quantas pessoas sentem ou já sentiram medo do escuro? Enquanto crianças fugiam para a cama da mãe no meio da noite, uma pequena menininha chamada Natascha Kampusch pôde suportar estar num lugar estranho, tendo sido jogada lá por um homem desconhecido, tendo de dormir e acordar na completa escuridão sem sua mãe para abraçar. Desesperou-se, mas se aguentou. Sem escolha, teve de se sustentar. Usou de sua imaginação para passar as horas. Apegou-se a lembranças queridas para transportar-se no espaço e no tempo. Profundos mistérios guardam a mente e a alma humanas! Não sabemos onde se esgota a sua imensa capacidade.

A garotinha de rosto angelical que se fez mulher com o passar dos anos no cativeiro nos faz refletir sobre nós mesmos. Depois de alguns anos de sofrimento extremo, Natascha teve algumas oportunidades de escapar, mas não o fez. Somente depois de completar a maioridade deu o passo definitivo e necessário à sua liberdade. Natascha fala que, depois de um tempo, a prisão psicológica tinha muros muito mais intransponíveis do que os do cativeiro. Até o ponto de o sequestrador colocá-la do lado de fora da casa e dizer: "- Vá". E ela não deu sequer um passo. A prisão psicológica à qual o sequestrador a submeteu era formada por muros demasiado altos, aos quais ela não tinha forças para ultrapassar. E Priklopil sabia disso. A atitude de colocá-la diante da porta era não mais que uma provocação: ele queria ter certeza de que seu experimento havia dado certo. O sequestrador havia construído na mente daquela garotinha muros tão altos que a fuga se tornava algo cada vez mais distante e irreal. Muros psicológicos construídos com base na crença de que o mundo lá fora não a queria de volta, os pais estariam felizes por não tê-la mais por perto, ela não era boa o suficiente para nada, ela não servia, ela não prestava, então, tinha de ser grata ao homem que a criava em cativeiro. Ideias incutidas na mente da menininha por aquele homem em suas atitudes perversas.

Mas, Natascha faz questão de ressaltar que nem tudo era brutalidade naquele homem. Em sua mente doentia, ainda havia espaço para pequenas demonstrações de carinho e atenção. Pouco a pouco, ele transparecia suas frustrações com sua própria vida, sua solidão, seus próprios medos e desesperos particulares. De certo modo, ele também se sentia sozinho, isolado, perdido, abandonado à própria sorte, como se o mundo não fosse receptivo a ele. Talvez não tivesse sido amado na infância. Talvez a sociedade não o olhasse de perto o suficiente para que ele próprio se sentisse inserido num contexto. De fato a sociedade não o via, não o percebia, não lhe dava a devida atenção, tanto que nesses anos todos nunca um vizinho, um amigo, um familiar ou um colega de trabalho, nunca ninguém percebeu algo de estranho no olhar, nas atitudes, na angústia daquele homem. Ou, quem sabe, talvez tivessem afirmado: “- Não é problema meu”.

A sociedade cria muito mais monstros do que destrói. Se era doente, necessitava de tratamento. Se cresceu sendo rejeitado, talvez um carinho e um amor o tivessem salvado e mudado seu destino e o destino de quem mais tarde atravessou o seu caminho. Se não tinha salvação, ao menos um olhar mais atento o teria percebido e descoberto seu crime. Estamos todos preocupados demais com nossas próprias vidas, nossos próprios interesses. Ocupados demais para olhar para o lado e perceber um olhar aflito. Damos “bom dia” aos nossos vizinhos com tanta indiferença que a distância entre nossas mãos parece ser um obstáculo intransponível. Quando foi que começamos a abrir abismos entre nós? Quando foi que começamos a construir nossos próprios cativeiros?

A porta da liberdade se colocou diante de Kampusch algumas outras vezes, anos antes de sua fuga, mas ela permaneceu trancada em si mesma. Quantos de nós já não agimos assim? Conseguimos perceber um caminho para nossos sonhos, uma luz no fim do túnel, um futuro melhor, um passo importante que temos de dar em direção à nossa liberdade, mas temos medo ou não temos tempo para nos dedicar ao propósito, ou arranjamos desculpas para não fazê-lo, e adiamos a nossa empreitada. Não só a Natascha, mas nós também adiamos a nossa fuga. A porta se põe aberta diante de nós e nós apenas a assistimos estáticos, vendo-a bater em seguida. Perdemos a oportunidade. Perdemos nossa grande chance. Teremos que suportar mais um pouco, lutar mais um pouco e tentar ser mais fortes da próxima vez.

Quantas vezes na vida não nos sentimos assim? Quem nunca se sentiu impotente? Algo de que necessitamos desesperadamente apresenta-se diante de nós, mas não nos sentimos preparados e fortes o suficiente internamente para alcançar. Um sonho, um objetivo, um desejo. E continuamos inertes. Sabemos que precisamos parar de procrastinar e que o momento de agir é aqui e agora. Sabemos. Mas o que nos impede? Nossos muros internos. Um dia Natascha amadureceu suas ideias e, em seu despertar, pôde enxergar esse muro com tanta clareza que decidiu que seria necessário destruí-lo. Teve consciência de que havia sido manipulada e forçada a se sentir reduzida a um nada. Teve ânimo para emergir. Sentiu-se forte para derrubar os muros que haviam sido construídos ao longo de tantos anos. Foi esfarelando os muros internos, buscando força interior para irromper para a vida, pois continuar no cativeiro não seria mais possível. Chegou a um ponto em que se tivesse de passar a vida inteira confinada, preferiria a morte. Nastascha escolheu a vida. E conquistou sua liberdade. Vestiu-se de um esforço colossal, terminou de retirar o último tijolo do titânico muro interno e, na oportunidade seguinte, simplesmente, fugiu.

Ao escapar, encontrou um mundo repleto de estímulos, aos quais já havia se desacostumado. E teve de reaprender a viver do lado de fora, reaprender a conviver com outras pessoas, depois de tanto tempo conhecendo somente um único ser humano, cuja mão que lhe maltratava e prendia era a mesma que lhe fornecia alimento. Aquele que lhe havia privado de uma vida normal era o mesmo de quem dependia a continuidade de sua vida. Com todo esse dualismo Natascha teve de lidar, na fase mais sinuosa da vida humana: a adolescência.

Mas, depois da fuga, já fora do confinamento, Nastacha se viu em novo cativeiro. Descobriu que o mundo não é um lugar para se viver livre. Entendeu que liberdade é algo que não existe, não da forma como ela imaginou. Estamos todos nós presos em um imenso cativeiro, que às vezes parece mais apertado, às vezes mais amplo. Sendo sufocados por olhares críticos. Obrigados a nos conduzir desta ou daquela forma publicamente, diante dos olhares desconfiados ou arrogantes dos vizinhos. Natascha, mesmo que contra a sua própria vontade, tornou-se uma pessoa pública. No dia de sua fuga, a imprensa ocupou todo o pátio da delegacia e esperava por ela. Ela seria notícia em todo o mundo. Do lado de fora, teve de se tornar novamente prisioneira, protegendo-se da curiosidade excessiva do público e da mídia. Desta vez, não seria mais possível fugir. Para aonde ir? A imprensa a acompanhava em seu encalço. Tornou-se novamente refém. Refém como todos nós, por vezes, somos: da inveja, da indiscrição alheia, da fofoca, do medo de sermos julgados, da superexposição. Refém dos preconceitos, das regras sociais e até mesmo da maldade. Não da maldade personificada, encarnada pela figura do sequestrador - o “mau”. Mas da maldade que existe dentro de cada pessoa. A maldade que não se vê ao olhar no espelho, a que fica encoberta. As pequenas maldades do dia-a-dia, pecadinhos pequenos e confessáveis, mas que às vezes afligem o nosso próximo. Natascha nos mostra que, acima de tudo, somos reféns da hipocrisia.


É tempo de derrubar muros

O crime contra Natascha Kampusch não é único na história. Como ela, quantas outras crianças e adultos podem estar sofrendo neste momento o mesmo horror? No sequestro e cárcere de Kampusch, não houve cúmplices. Priklopil agiu sozinho. Não só de gangues vive o crime. Priklopil possuía vizinhos. Ninguém desconfiava. Ele tinha um emprego. Ninguém notou nada de errado. Ele ia ao shopping, ele viajava, ele fazia compras, ele tinha um amigo, ele tinha uma mãe. Ninguém o olhou com a devida atenção, senão poderiam ter reparado que algo estava fora dos eixos. Crueldades terríveis podem ser evitadas ou ter sua continuidade interrompida se aprendermos a olhar no nosso entorno com mais cuidado. Se a polícia sozinha não pode desvendar todos os crimes, nós precisamos nos despir de nossas vendas e olhar o nosso próximo olho no olho, não mais superficialmente, mas olhar no fundo da alma. Conhecer nossos vizinhos. Conhecer as pessoas que nos cercam. Conhecer nossos colegas. Olhar com atenção, carinho, amor, compaixão, solidariedade, amizade, como irmãos no mesmo barco do mundo. Ao olhar, podemos ajudar alguém que notamos precisar de um simples auxílio. E, numa perspectiva mais ampla, podemos vir a perceber alguém que precisa de uma intervenção maior. Prestar atenção no próximo é uma atitude para o bem e proteção da nossa própria família, para o bem de toda a comunidade e de todo o mundo.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).

Serviço:
Livro: 3096 Dias
Autora: Natascha Kampusch
Editora: Verus - Grupo Record
1ª Edição / Ano: 2011/ 225 páginas
Preço médio: R$ 28,00

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Um conto em homenagem ao Rio de Janeiro, em comemoração ao aniversário de 446 anos da cidade.


                            

Fantástica Cidade Maravilhosa

Hoje é uma noite quente de verão do ano de 2087. Resolvi escrever, porque estou tendo uma noite inquietante. São três horas da madrugada agora, mas preferi levantar e desabafar um pouco aqui. Fiquei revirando de um lado para o outro na cama, sendo sugado por meus pensamentos - lembranças da minha infância que vinham em flashes. Lembro-me nitidamente como se fosse ontem, mas já faz muito tempo, eu sei. Ontem foi meu aniversário, completei 83 anos. De presente, recebi da minha filha um embrulho curiosamente deteriorado pelo tempo e, por orientação dela, só pude desembalar quando cheguei em casa. Eu estava sozinho quando abri o pacote. Dentro havia a peça que faltava no quebra-cabeça da minha história. Quem mais poderia saber do meu segredo? Só eu e o meu falecido avô tínhamos conhecimento sobre o que havia acontecido naquele verão de 2011. Havia junto do presente uma carta datada de março daquele ano. Nela, vovô dizia que ele estava completando 83 anos e que, quando eu chegasse a essa mesma idade, se tivesse assim a mesma sorte, eu deveria receber o presente que ele naquela data embrulhava – a peça que me faltava. Ele usaria dos meios possíveis para que o pacote chegasse em minhas mãos na data programada, dali a 76 anos.

Por trás das minhas mãos enrugadas e da minha memória já um pouco gasta, há ainda uma alma de menino. Foi por isso que logo pude viajar no tempo, divagando em minha mente, com a mesma inocência das crianças. Ao olhar o presente que recebera depois de tanto tempo, as imagens daquele longínquo verão voltaram diante de mim. As coisas já estão bem diferentes por aqui hoje. Toda essa modernidade não era nem de longe sonhada naqueles anos. Mas a simplicidade em que vivíamos ainda me causa uma profunda nostalgia. Pensávamos que estávamos desfrutando de muitos avanços tecnológicos. As crianças brincavam horas a fio ao computador e na Internet, aproveitando muito pouco as delícias de viver numa cidade como o Rio de Janeiro. Mas ainda assim, nada se compara ao modo como os jovens vivem hoje. As ruas estão tão vazias... as relações se virtualizaram cada vez mais.

Era o começo de 2011 e nos dois primeiros meses do ano eu estava de férias. Eu completava sete anos e meu avô me levara para visitar o Cristo Redentor pela primeira vez. Aquela estátua que já fazia parte habitual da minha vida, nas idas e vindas pelas ruas do Rio, agora seria vista de pertinho. Ele disse que perante a estátua, que se faria enorme diante de mim, eu poderia fazer um pedido. Nunca havia ouvido falar em tal possibilidade, talvez ele mesmo tivesse inventado. O fato é que eu já estava ansioso, pois sabia exatamente o que queria e tinha certeza de que meu desejo seria realizado. Ao olhar para cima e ver o Cristo Redentor de braços abertos fechei os olhos e pedi com toda a força do mundo: - Quero ter super poderes! No fundo, o que eu mais queria era aproveitar o Rio de janeiro a janeiro. Eu era criança, então, é claro que os super poderes me ajudariam nessa tarefa!

Naquele mesmo dia eu já pude experimentar as forças sobrenaturais que me acompanharam durante todo aquele verão, até o Carnaval. De repente, eu me tornei invisível e só o meu avô conseguia me ver. Não havia problemas, ele sabia e entendia tudo o que estava acontecendo. Pelo que me contara, quando ele era criança, teria tido a mesma experiência. Quando terminei de fazer o meu pedido, abri os olhos e, de repente, por mágica, eu estava flutuando acima do Corcovado, indo em direção à estátua do Cristo. Quando cheguei junto do Cristo Redentor estiquei a mão e pude tocá-lo, ele não era mais feito de pedra, estava macio. Dei-lhe um forte abraço e ele me apertou com muita ternura, num estreito enlace, afagando-me intensamente. Era um abraço tão fofo, tão gostoso, senti-me tão protegido e abençoado! Saí dali com muita coragem e disposição para o meu dia de aventuras. A estátua do Cristo Redentor me pegou no colo e me levou, então, nos seus braços de volta até o Pão de Açúcar, deslizando sob os cabos do bondinho, como se fosse uma espécie de tirolesa.

Ao chegar do outro lado, o Redentor colocou-me sentado sobre o Pão de Açúcar. Olhei para o pão doce gigantesco debaixo de mim e pude tirar-lhe um pedacinho. Estava macio e o aroma era de pão fresquinho. O pão gigantesco estava quente, não sabia se por causa do sol escaldante ou se porque tinha acabado de sair do forno. Logo entendi que meus super poderes transformavam tudo o que estava ao meu redor na mais pura delícia que eu pudesse imaginar. Era uma fantástica cidade feita só pra mim! A Cidade Maravilhosa recriada a partir da minha própria imaginação! Mas eu não podia usufruir de tudo isso sozinho... Eu sentia uma imensa vontade de compartilhar com os outros dessa mesma alegria!

Foi então que tive uma idéia e fui voando até a praia do Arpoador. Já era fim de tarde e logo aconteceria ali o famoso espetáculo do pôr-do-sol. Esperei quietinho vendo o sol se esconder por detrás do Morro Dois Irmãos, deixando rastros no céu de uma beleza estonteante, misturando variados tons de laranja, rosa e amarelo. Enquanto a platéia de banhistas se distraía com a contemplação e alguns aplaudiam enternecidos, fui furtivamente até onde o sol se escondia, por trás dos Dois Irmãos e peguei aquele imenso balão de fogo emprestado pra mim. Os Dois Irmãos não se incomodaram, já haviam brincado bastante com o grande sol e logo iriam dormir. Vim trazendo o sol em minhas mãos, carregando-o por um fio como se fosse um grande balão de gás. Enorme, brilhante, o meu balão era o mais lindo do mundo!

Saí dali o mais depressa que pude e fui correndo pelas ruelas das comunidades mais carentes da minha cidade e pelos hospitais, iluminando a vida dos que mais necessitavam. Fui com o sol distribuindo um pouco de calor e luz por onde passava. A energia solar era estendida a todos pelo caminho. O grande balão dourado flutuava sobre mim, amarrado em minha mãzinha tão frágil. Parecia repleto de gás hélio, pois estava tão leve! Fui correndo, dançante, sapateando por todos os trajetos que me ocorriam, levando a luz brilhante aos acometidos pelo medo, pelo sofrimento, pela pobreza e pela injustiça. O balão dourado ia distribuindo e renovando a alegria e a esperança dos que por aqueles caminhos estavam. Quando terminei, fui devolver a grande esfera aos Dois Irmãos, que já haviam dormido e estavam descansados para um novo dia que viria pela frente. Tão simpáticos esses dois cariocas! Acabamos ficando amigos.

Gostei tanto da experiência que voltei lá muitas vezes para buscar o sol, e depois de cumprida a tarefa o devolvia, para que pudesse nascer um novo dia. Mas às vezes eu deixava o sol descansar. Nesses dias, eu esperava ficar bem de noitinha. E, então, era a lua que eu buscava. Nas noites de lua crescente ou minguante, eu escorregava em suas curvas. Enquanto eu brincava, conversávamos sobre tudo. Numa certa noite de lua cheia, ela me contou que também era criança e confessou que não entendia por que sendo ela também redonda e sabendo girar, não podia se divertir como uma bola! Naquela noite mesmo, fiquei tão comovido com o desejo enluarado que carreguei a lua de surpresa. Para que ninguém desse pela falta da lua no céu, pedi a uma amiga nuvem que ficasse bem posicionada, assim, pensariam que a lua estava encoberta. Fui quicando a lua pelo céu, desci até o Rio de Janeiro e a levei para o Maracanã. Lá no grande estádio brincamos até quase o amanhecer, quando tive de levá-la de volta para o seu lugar. Prometi que a visitaria ao anoitecer e a buscaria para brincar com outros meninos da minha idade.

Na noite seguinte, como prometido, eu levei a lua cheia para passear por diversos campos de futebol em comunidades e condomínios, praças e clubes da Cidade Maravilhosa. Eu chegava com a lua disfarçada de bola e a arremessava dentro dos campos e das quadras para os meninos que estavam jogando futebol. Logo eles se animavam com aquela bola prata brilhante, distinta, reluzente. Sentiam que havia algo de especial nela. E a lua se divertia tanto! Rolava por entre as pernas dos meninos e gargalhava porque sentia cócegas a cada pontapé. A lua vibrava a cada chute a gol e não sabia nunca para qual time torcer. Aqueles que chutaram aquela lua-bola-encantada levaram um pouco do seu brilho para a vida e são eles os nomes que fizeram grande sucesso no futebol carioca. Havia alguma espécie de feitiço na bola-lua, e ela fazia brilhar todo aquele que com ela fizesse um gol. Os grandes craques das décadas seguintes foram aqueles mesmos que brincaram com a bola brilhante das noites de lua cheia, sem saber que a bola era lua. E que a lua brincava, também se divertia, gostava de ser bola e retribuía a alegria.

Depois de uma noite dessas, voltando pra casa, avistei um barquinho, saindo da Marina da Glória. Lá fui eu passear um pouco de barco, sentir o vento soprar em meus cabelos. Invisível, eu entrava nos lugares e ia descobrir o que havia de mais gostoso para se fazer. Sentei-me perto da proa e fui navegando, os pensamentos iam e vinham, como as ondas do mar. Eu relaxando, aproveitando, já no amanhecer, o sol de verão no límpido céu azul. Olhava o imenso mar, passeava com os olhos pelas silhuetas das montanhas abraçando a cidade do Rio. Embevecido por ser morador daquele lugar de sonho, seguia eu, cidadãozinho em formação, amando a minha casa, a minha morada, a minha Cidade Maravilhosa. Tornava-me um carioca apaixonado, dia após dia, olhando deslumbrado como um turista que vê pela primeira vez a majestade imponente da beleza natural que ali reside. Navegando pelas margens da cidade, eu sentia a magia que é ver, visitar ou viver no Rio. Eu estava absorto em meus pensamentos, quando, de súbito, começou a cair uma chuva fina, mas ainda fazia sol. Gotas cristalinas se juntavam ao mar. Formou-se um gigantesco arco-íris que cobria toda a extensão da Marina da Glória até a praia de Botafogo, passando pelo Flamengo.

Abandonei a embarcação e fui voando até o princípio do arco-íris. Subi alegremente pelas faixas coloridas e fui escorregando até o outro lado. Eu subia e descia. Ia e vinha. Escorregando e passeando pelas cintas de luz. Escorregava até o mar e dava um mergulho. Depois voltava para o arco-íris e corria até o topo. Descia escorregando de ponta-cabeça e depois retornava para brincar mais um pouco. Fiz isso inúmeras vezes até que a chuva foi passando e o arco íris se desmanchou. Então, já exausto, fui para casa, como muitas outras vezes em que, cansado depois de um dia tão colossal, ia dormir. Mas, às vezes, extasiado com tantas aventuras extraordinárias, não conseguia cair no sono e passava a noite em claro, já inventando moda para o dia seguinte.

Aproximava-se o fim das férias e logo chegou o Carnaval. O Sambódromo estava repleto. Pessoas de todos os tipos, todas as idades, todas as classes. Todas se misturavam, sambavam e cantavam num só ritmo. A magia era tanta que se fundiu à magia que eu carregava desde o início do verão. Aquele feitiço foi cedendo ao ritmo da bateria das escolas que foram chegando e sacudindo tudo em volta. Não que a energia estivesse sendo suprimida, mas espalhada, distribuída, por tudo e por todos, para que um pouco dela fosse fazer parte de cada um. Conforme as escolas de samba chegavam para desfilar e também conforme os blocos de rua iam passando, a energia dos super poderes ia sendo espalhada por toda a população, distribuída através da música, viajando por meio dos sons a todos os cariocas - de nascença ou de coração - que estavam espalhados por todo o mundo.

Hoje, nesta noite quente de verão do ano de 2087, fiquei horas passeando por essas lembranças, antes que tivesse coragem de abrir o tão misterioso pacote. Mas, finalmente, minhas mãos envelhecidas desfazem o embrulho que recebi de presente. Quando eu o abro, uma luz magnífica sai de dentro dele e invade todo o ambiente, resplandecendo, atravessando as janelas, de dentro para fora. Tapo com a mão um pouco da claridade e posso ver que, na carta que acompanha o presente, está escrito algo magnífico: posso fazer um novo pedido. Com o mesmo coração infantil de sempre, acreditei com toda a minha força de velho menino. Fechei os olhos e desejei receber de novo super poderes por mais um verão e carregar comigo o balão-sol e a bola-lua para sempre. O Pão de Açúcar que me espere... não vejo a hora de devorá-lo mais uma vez!

Autoria:

Ilustração: Chico Azevedo

Todos os direitos autorais reservados.


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