Fantástica Cidade Maravilhosa
Hoje é uma noite quente de verão do ano de 2087. Resolvi escrever, porque estou tendo uma noite inquietante. São três horas da madrugada agora, mas preferi levantar e desabafar um pouco aqui. Fiquei revirando de um lado para o outro na cama, sendo sugado por meus pensamentos - lembranças da minha infância que vinham em flashes. Lembro-me nitidamente como se fosse ontem, mas já faz muito tempo, eu sei. Ontem foi meu aniversário, completei 83 anos. De presente, recebi da minha filha um embrulho curiosamente deteriorado pelo tempo e, por orientação dela, só pude desembalar quando cheguei em casa. Eu estava sozinho quando abri o pacote. Dentro havia a peça que faltava no quebra-cabeça da minha história. Quem mais poderia saber do meu segredo? Só eu e o meu falecido avô tínhamos conhecimento sobre o que havia acontecido naquele verão de 2011. Havia junto do presente uma carta datada de março daquele ano. Nela, vovô dizia que ele estava completando 83 anos e que, quando eu chegasse a essa mesma idade, se tivesse assim a mesma sorte, eu deveria receber o presente que ele naquela data embrulhava – a peça que me faltava. Ele usaria dos meios possíveis para que o pacote chegasse em minhas mãos na data programada, dali a 76 anos.
Por trás das minhas mãos enrugadas e da minha memória já um pouco gasta, há ainda uma alma de menino. Foi por isso que logo pude viajar no tempo, divagando em minha mente, com a mesma inocência das crianças. Ao olhar o presente que recebera depois de tanto tempo, as imagens daquele longínquo verão voltaram diante de mim. As coisas já estão bem diferentes por aqui hoje. Toda essa modernidade não era nem de longe sonhada naqueles anos. Mas a simplicidade em que vivíamos ainda me causa uma profunda nostalgia. Pensávamos que estávamos desfrutando de muitos avanços tecnológicos. As crianças brincavam horas a fio ao computador e na Internet, aproveitando muito pouco as delícias de viver numa cidade como o Rio de Janeiro. Mas ainda assim, nada se compara ao modo como os jovens vivem hoje. As ruas estão tão vazias... as relações se virtualizaram cada vez mais.
Era o começo de 2011 e nos dois primeiros meses do ano eu estava de férias. Eu completava sete anos e meu avô me levara para visitar o Cristo Redentor pela primeira vez. Aquela estátua que já fazia parte habitual da minha vida, nas idas e vindas pelas ruas do Rio, agora seria vista de pertinho. Ele disse que perante a estátua, que se faria enorme diante de mim, eu poderia fazer um pedido. Nunca havia ouvido falar em tal possibilidade, talvez ele mesmo tivesse inventado. O fato é que eu já estava ansioso, pois sabia exatamente o que queria e tinha certeza de que meu desejo seria realizado. Ao olhar para cima e ver o Cristo Redentor de braços abertos fechei os olhos e pedi com toda a força do mundo: - Quero ter super poderes! No fundo, o que eu mais queria era aproveitar o Rio de janeiro a janeiro. Eu era criança, então, é claro que os super poderes me ajudariam nessa tarefa!
Naquele mesmo dia eu já pude experimentar as forças sobrenaturais que me acompanharam durante todo aquele verão, até o Carnaval. De repente, eu me tornei invisível e só o meu avô conseguia me ver. Não havia problemas, ele sabia e entendia tudo o que estava acontecendo. Pelo que me contara, quando ele era criança, teria tido a mesma experiência. Quando terminei de fazer o meu pedido, abri os olhos e, de repente, por mágica, eu estava flutuando acima do Corcovado, indo em direção à estátua do Cristo. Quando cheguei junto do Cristo Redentor estiquei a mão e pude tocá-lo, ele não era mais feito de pedra, estava macio. Dei-lhe um forte abraço e ele me apertou com muita ternura, num estreito enlace, afagando-me intensamente. Era um abraço tão fofo, tão gostoso, senti-me tão protegido e abençoado! Saí dali com muita coragem e disposição para o meu dia de aventuras. A estátua do Cristo Redentor me pegou no colo e me levou, então, nos seus braços de volta até o Pão de Açúcar, deslizando sob os cabos do bondinho, como se fosse uma espécie de tirolesa.
Ao chegar do outro lado, o Redentor colocou-me sentado sobre o Pão de Açúcar. Olhei para o pão doce gigantesco debaixo de mim e pude tirar-lhe um pedacinho. Estava macio e o aroma era de pão fresquinho. O pão gigantesco estava quente, não sabia se por causa do sol escaldante ou se porque tinha acabado de sair do forno. Logo entendi que meus super poderes transformavam tudo o que estava ao meu redor na mais pura delícia que eu pudesse imaginar. Era uma fantástica cidade feita só pra mim! A Cidade Maravilhosa recriada a partir da minha própria imaginação! Mas eu não podia usufruir de tudo isso sozinho... Eu sentia uma imensa vontade de compartilhar com os outros dessa mesma alegria!
Foi então que tive uma idéia e fui voando até a praia do Arpoador. Já era fim de tarde e logo aconteceria ali o famoso espetáculo do pôr-do-sol. Esperei quietinho vendo o sol se esconder por detrás do Morro Dois Irmãos, deixando rastros no céu de uma beleza estonteante, misturando variados tons de laranja, rosa e amarelo. Enquanto a platéia de banhistas se distraía com a contemplação e alguns aplaudiam enternecidos, fui furtivamente até onde o sol se escondia, por trás dos Dois Irmãos e peguei aquele imenso balão de fogo emprestado pra mim. Os Dois Irmãos não se incomodaram, já haviam brincado bastante com o grande sol e logo iriam dormir. Vim trazendo o sol em minhas mãos, carregando-o por um fio como se fosse um grande balão de gás. Enorme, brilhante, o meu balão era o mais lindo do mundo!
Saí dali o mais depressa que pude e fui correndo pelas ruelas das comunidades mais carentes da minha cidade e pelos hospitais, iluminando a vida dos que mais necessitavam. Fui com o sol distribuindo um pouco de calor e luz por onde passava. A energia solar era estendida a todos pelo caminho. O grande balão dourado flutuava sobre mim, amarrado em minha mãzinha tão frágil. Parecia repleto de gás hélio, pois estava tão leve! Fui correndo, dançante, sapateando por todos os trajetos que me ocorriam, levando a luz brilhante aos acometidos pelo medo, pelo sofrimento, pela pobreza e pela injustiça. O balão dourado ia distribuindo e renovando a alegria e a esperança dos que por aqueles caminhos estavam. Quando terminei, fui devolver a grande esfera aos Dois Irmãos, que já haviam dormido e estavam descansados para um novo dia que viria pela frente. Tão simpáticos esses dois cariocas! Acabamos ficando amigos.
Gostei tanto da experiência que voltei lá muitas vezes para buscar o sol, e depois de cumprida a tarefa o devolvia, para que pudesse nascer um novo dia. Mas às vezes eu deixava o sol descansar. Nesses dias, eu esperava ficar bem de noitinha. E, então, era a lua que eu buscava. Nas noites de lua crescente ou minguante, eu escorregava em suas curvas. Enquanto eu brincava, conversávamos sobre tudo. Numa certa noite de lua cheia, ela me contou que também era criança e confessou que não entendia por que sendo ela também redonda e sabendo girar, não podia se divertir como uma bola! Naquela noite mesmo, fiquei tão comovido com o desejo enluarado que carreguei a lua de surpresa. Para que ninguém desse pela falta da lua no céu, pedi a uma amiga nuvem que ficasse bem posicionada, assim, pensariam que a lua estava encoberta. Fui quicando a lua pelo céu, desci até o Rio de Janeiro e a levei para o Maracanã. Lá no grande estádio brincamos até quase o amanhecer, quando tive de levá-la de volta para o seu lugar. Prometi que a visitaria ao anoitecer e a buscaria para brincar com outros meninos da minha idade.
Na noite seguinte, como prometido, eu levei a lua cheia para passear por diversos campos de futebol em comunidades e condomínios, praças e clubes da Cidade Maravilhosa. Eu chegava com a lua disfarçada de bola e a arremessava dentro dos campos e das quadras para os meninos que estavam jogando futebol. Logo eles se animavam com aquela bola prata brilhante, distinta, reluzente. Sentiam que havia algo de especial nela. E a lua se divertia tanto! Rolava por entre as pernas dos meninos e gargalhava porque sentia cócegas a cada pontapé. A lua vibrava a cada chute a gol e não sabia nunca para qual time torcer. Aqueles que chutaram aquela lua-bola-encantada levaram um pouco do seu brilho para a vida e são eles os nomes que fizeram grande sucesso no futebol carioca. Havia alguma espécie de feitiço na bola-lua, e ela fazia brilhar todo aquele que com ela fizesse um gol. Os grandes craques das décadas seguintes foram aqueles mesmos que brincaram com a bola brilhante das noites de lua cheia, sem saber que a bola era lua. E que a lua brincava, também se divertia, gostava de ser bola e retribuía a alegria.
Depois de uma noite dessas, voltando pra casa, avistei um barquinho, saindo da Marina da Glória. Lá fui eu passear um pouco de barco, sentir o vento soprar em meus cabelos. Invisível, eu entrava nos lugares e ia descobrir o que havia de mais gostoso para se fazer. Sentei-me perto da proa e fui navegando, os pensamentos iam e vinham, como as ondas do mar. Eu relaxando, aproveitando, já no amanhecer, o sol de verão no límpido céu azul. Olhava o imenso mar, passeava com os olhos pelas silhuetas das montanhas abraçando a cidade do Rio. Embevecido por ser morador daquele lugar de sonho, seguia eu, cidadãozinho em formação, amando a minha casa, a minha morada, a minha Cidade Maravilhosa. Tornava-me um carioca apaixonado, dia após dia, olhando deslumbrado como um turista que vê pela primeira vez a majestade imponente da beleza natural que ali reside. Navegando pelas margens da cidade, eu sentia a magia que é ver, visitar ou viver no Rio. Eu estava absorto em meus pensamentos, quando, de súbito, começou a cair uma chuva fina, mas ainda fazia sol. Gotas cristalinas se juntavam ao mar. Formou-se um gigantesco arco-íris que cobria toda a extensão da Marina da Glória até a praia de Botafogo, passando pelo Flamengo.
Abandonei a embarcação e fui voando até o princípio do arco-íris. Subi alegremente pelas faixas coloridas e fui escorregando até o outro lado. Eu subia e descia. Ia e vinha. Escorregando e passeando pelas cintas de luz. Escorregava até o mar e dava um mergulho. Depois voltava para o arco-íris e corria até o topo. Descia escorregando de ponta-cabeça e depois retornava para brincar mais um pouco. Fiz isso inúmeras vezes até que a chuva foi passando e o arco íris se desmanchou. Então, já exausto, fui para casa, como muitas outras vezes em que, cansado depois de um dia tão colossal, ia dormir. Mas, às vezes, extasiado com tantas aventuras extraordinárias, não conseguia cair no sono e passava a noite em claro, já inventando moda para o dia seguinte.
Aproximava-se o fim das férias e logo chegou o Carnaval. O Sambódromo estava repleto. Pessoas de todos os tipos, todas as idades, todas as classes. Todas se misturavam, sambavam e cantavam num só ritmo. A magia era tanta que se fundiu à magia que eu carregava desde o início do verão. Aquele feitiço foi cedendo ao ritmo da bateria das escolas que foram chegando e sacudindo tudo em volta. Não que a energia estivesse sendo suprimida, mas espalhada, distribuída, por tudo e por todos, para que um pouco dela fosse fazer parte de cada um. Conforme as escolas de samba chegavam para desfilar e também conforme os blocos de rua iam passando, a energia dos super poderes ia sendo espalhada por toda a população, distribuída através da música, viajando por meio dos sons a todos os cariocas - de nascença ou de coração - que estavam espalhados por todo o mundo.
Hoje, nesta noite quente de verão do ano de 2087, fiquei horas passeando por essas lembranças, antes que tivesse coragem de abrir o tão misterioso pacote. Mas, finalmente, minhas mãos envelhecidas desfazem o embrulho que recebi de presente. Quando eu o abro, uma luz magnífica sai de dentro dele e invade todo o ambiente, resplandecendo, atravessando as janelas, de dentro para fora. Tapo com a mão um pouco da claridade e posso ver que, na carta que acompanha o presente, está escrito algo magnífico: posso fazer um novo pedido. Com o mesmo coração infantil de sempre, acreditei com toda a minha força de velho menino. Fechei os olhos e desejei receber de novo super poderes por mais um verão e carregar comigo o balão-sol e a bola-lua para sempre. O Pão de Açúcar que me espere... não vejo a hora de devorá-lo mais uma vez!
Autoria:
Texto: Gizele Toledo de Oliveira
Ilustração: Chico Azevedo
Todos os direitos autorais reservados.
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Parabéns! Adorei! Deveria publicar em um livro! Estava precisando de alguem para escrever aquele livro tão necessário! Quem sabe vc não aceita escreve-lo de maneira leve e divertida?
ResponderExcluirAndrea
Nossa! Acredita que, quando eu era criança, eu chamava o Pão de Açúcar de Pão Doce? Na maior inocência. É que para mim, eram a mesma coisa, sinônimos! Meu pai fazia questão de sempre lembrar esse fato, várias e várias vezes.
ResponderExcluirFiquei surpresa com seu conto, uma grata surpresa!
Beijinhos,
Adriana Rivas
Você consegue deixar transparecer a sua ternura e pureza nos seus textos....sou sua fã!! :) beijosss da Austrália...consegui viajar pelo Cristo...pão de Açucar...arpoador...e voltei... Amor da Carol e Maria Clara
ResponderExcluirDemais mesmo! Voltamos a ser crianças mergulhados na fantasia e pureza do lúdico e imaginativo universo de criança. E aí? Vamos fazer um livro?
ResponderExcluirquanta coincidência. Li seu artigo ontem. postei um comentário mas acho que não vingou. Vai ver que não era para vc ler mesmo, sei lá... Fiquei impressionado com a semelhança de seu conto com o que eu sinto, principalmente em relação ao vento. Viajei no seu conto.
ResponderExcluirBJS.
Hoje se fosse escolher um super poder, pediria telepatia, para ler tudo que vem de você, leria sua mente, passaria minhas férias dentro de você.
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