quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Reflexões de fim de tarde...



        Quando eu tento levar a vida muito a sério, a minha criança interior me faz cócegas... 
        Impressionante o quanto mudei nos últimos cinco anos. Ficou para trás a menina ingênua, pura, romântica, medrosa, sonhadora e que via o mundo cor-de-rosa. E quer saber? Não sinto saudade dela. Vieram os aprendizados... Hoje muitas pessoas não me reconheceriam. Claro que minha essência não me abandona, mas me tornei mais prática, consciente, em constante busca do desenvolvimento interior.
        Passei a cuidar mais de mim. Aprendi a perdoar a mim mesma por ser imperfeita, o que acabou me levando a perdoar os outros também, por consequência. Entendi que o momento presente é sempre o mais importante da minha vida. Aprendi a não carregar o passado, aliviando o peso da bagagem ao descartar o que não serve pelo caminho.  Aprendi a não me preocupar com o futuro e a fazer planos realistas para o dia de hoje, o qual me basta.
        Tornei-me mais intensa no prazer, mais leve no sofrimento e mais firme em minhas escolhas. Subi os primeiros degraus de uma evolução que espero que dure toda a minha existência. Não tenho pressa ou pretensão de chegar ao topo. Só quero estar atenta e sentir cada passo, degrau por degrau. O que importa é que não perdi o brilho dos olhos... O amor pela vida me transborda.

 Autora: Gizele Toledo de Oliveira (texto registrado/direitos autorais reservados).

terça-feira, 23 de julho de 2013

O ipê e a casa



           Às vezes eu passava por uma rua onde havia uma casa bucólica com uma bela árvore na frente, que me chamava atenção pela delicadeza de suas flores cor-de-rosa. Eu chegava a respirar fundo e podia jurar sentir o aroma daquelas pétalas e experimentar a energia daquela relação entre a árvore e a casa.

           O texto abaixo escrevi quando um dia passei pelo local e, surpresa, vi que a casa havia sido demolida, para a construção de mais um prédio de muitos andares, como tem sido comum nas redondezas, pelo avançar da especulação imobiliária.

            Fiquei, em parte, feliz, ao constatar que, por algum motivo, decidiram deixar a árvore de pé. Fiquei feliz e melancólica ao mesmo tempo, pois, embora ela tivesse sido preservada, pude imaginar a tristeza daquela árvore ao testemunhar a destruição de sua companheira de longa data. Aquela velha companheira, de ar ingênuo, ficou no passado. Restou a pobrezinha ali, sozinha, no terreno vazio, já fechado por tapumes da futura obra. Percebi-a tão desolada. Será que o novo prédio lhe traria algum conforto? Então, escrevi:

            E o ipê ficou lá, guardando as memórias da casa que o namorava... Só espero que conservem de pé este lindo ipê que parece defender, solitário, o nome do bairro "Jardim Icaraí".  No inverno, suas flores ainda resistem. Na primavera, ele é um luxo, uma explosão de flores! Ou era... Não sei como vai ser agora, que sua amada, a casa, se foi. E não se pode afirmar que tenha partido desta para melhor... Se alguém souber para aonde vão as almas das casas quando morrem, favor informar. Que Deus a tenha!

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (texto registrado/direitos autorais reservados).

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Sobre nascer todos os dias...


Este texto escrevi em setembro de 2012, por ocasião do show da Marisa Monte. Hoje quero compartilhar com vocês... Lá vai:


Hoje é dia de show da Marisa Monte.
E o que a felicidade tem a ver com isso? Tudo.

“E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...”
Alberto Caeiro

Meu pai me perguntou: - Como que um simples show, uma coisa tão corriqueira, pode te deixar tão empolgada?
Minha resposta imediata: - Porque vivo a vida intensamente. Nada para mim é banal.

E como ele teve interesse em ouvir, continuei: - A cama quentinha, a água morna do chuveiro, a comida saborosa, o mergulho no mar, o amanhecer, a lua cheia, o ipê daqui da nossa rua quando floresce, o passarinho que pousa nas grades da nossa janela... Tudo, a cada nova vez, é vivido como se fosse uma nova experiência, porque, se de fato fosse, seria, então, apreciado.  Triste é perder essa capacidade de aproveitar momentos bons e simples, e passar por eles sem nada sentir, como se fossem só etapas rotineiras de uma vida ordinária. Para quem passa a prestar atenção nos mínimos prazeres, certos acontecimentos cotidianos passam de banais a sensacionais. E a diferença entre viver de um modo ou de outro é tão somente o ponto de vista.

Dormi bem essa noite. Em algum lugar da mente, durante os sonhos, devo ter encontrado algumas respostas mais. Porque acordei com vontade súbita de escrever este texto e, quem sabe, compartilhar um pouco estas ideias que há muito me acompanham. Não raro alguém me pergunta:  - Seu olhar está brilhando, seu rosto radiante... está apaixonada? Está feliz? Minha resposta: - Sou uma eterna apaixonada pela vida e, eventualmente, por outrem ou por mim. Por que não? Às vezes, porém, terá sido apenas uma TPM que se findou, conferindo novo rubor à face e alívio ao espírito. Oh, mulher! Um ser movido a hormônios. Não se pode deixá-los fora da história sob o risco de torná-la incompleta.

Vivendo cada vão momento da vida como se único fosse, é mais fácil se permitir a felicidade. Os sentimentos de paz, plenitude, abastança inundam a alma e fica difícil encontrar-se triste. Mas, para se viver com verdade, os sentimentos precisam ser genuínos... Não há de se falar numa alegria falsa, daquela que se exibe sorridente nas ruas e se derrama em lágrimas no travesseiro.  Assim, se a tristeza vem, deixo-a vir. Mas, vivendo esse hábito de prestar atenção em cada pequeno detalhe da existência, a amargura não costuma encontrar lugar. Não encontrando o cenário perfeito para se instalar, a Tristeza, essa senhora indiscreta e bisbilhoteira, não se esparrama no sofá da sala, não traz as malas e avisa que vai ficar um fim de semana e acaba ficando um mês, um ano, como um parente distante numa visita inesperada. Sim, a tristeza vem, não porque lhe é permitido vir. Essa dona é enxerida e viria de qualquer maneira. Mas não, a tristeza não vem para ficar. Ela é simples passageira e, mal esquenta lugar, logo se despede, havendo outros corações mais aflitos onde ela possa se sentir mais à vontade para se instalar.

A Felicidade sim, essa gosta do aconchego do meu coração, da cama fofa que preparei para ela, do sofá que forrei com seda, da mesa posta com comida a perfumar o salão. Ah, a minha querida Felicidade é uma moça gentil e doce, que chega de mansinho, diz que não vai se demorar . Mas, sendo tão agradável a sua presença, por insistência minha, vai ficando, vai ficando... até que entra na rotina da casa, e, como a maioria que não é chegada a mudanças, aqui permanece como se a casa fosse sua. É fácil para essa moça se acostumar com o ambiente: já encontrou a cama feita, o jardim tratado, a louça lavada, a roupa passada, não há muito com o que se preocupar. E ela vai ficando.

Se, eventualmente, a Tristeza vem arrebatadora, enciumada invadindo meu lar, derrubando porta abaixo e criando o maior reboliço, não há o que fazer contra toda essa violência. O melhor é esperar. Se os acontecimentos vêm muito dolorosos e marcantes, se o desgosto é profundo, e as soluções parecem pequenas gotículas num nebuloso temporal, deixo que essa infelicidade intensa venha e desarrume tudo, mas sem perder de vista que, nesse mundo de altos e baixos, todo turbilhão tem seu fim, tudo isso vai passar.

Aprendi que a tristeza não é um monstro do qual tenho que me proteger ou um mal do qual tenho que me afastar. Porque, humanos que somos, por mais que levantemos barreiras, estaremos sempre sujeitos ao aparecimento desse redemoinho. Entretanto, é impressionante o poder do controle emocional, quando se descobrem ferramentas próprias para se lidar com a mente. Em primeiro lugar, é importante saber que é possível adquirir certo controle sobre os nossos pensamentos e que, pensamentos geram sentimentos, bem como sentimentos geram sensações. Negar as amarguras seria viver na superficialidade. Não é essa a ideia. Assim, há um modo de vivenciar as experiências negativas que aprendi com o tempo: deixo a tristeza vir, mas a experimento como se eu fosse um vidro transparente, através do qual passam os raios, e não uma superfície espelhada ou opaca na qual os raios se refletem ou se retêm. Num estado de elaboração mental e buscando a consciência sobre meus pensamentos e sentimentos, vou deixando as sensações fluírem. Tristeza, afinal, não é um ser sólido; é tão somente um sentimento, dentre tantos outros. E, sendo apenas mais um sentimento, permito-me senti-lo, deixo-o seguir seu curso, tomo consciência de que esse sentimento tem seu ciclo: vem, atravessa-me e passa. Deixo-o seguir seu fluxo e provocar as mudanças necessárias.

A partir do momento em que não se remói a tristeza, mas deixa-se apenas que ela flua e siga seu curso, em poucos dias a tristeza parte e me deixa só. É o momento de me encontrar comigo mesma e descobrir que transformações ela provocou em mim. Estou renovada. É hora de tomar um banho mais lento, sentindo com intensidade a água morna se derramando sobre mim. É hora de saborear um brigadeiro como se fosse o último. Ou de caminhar na praia como se nunca antes tivesse visto aquela paisagem. É hora do deslumbramento. É o momento de acordar para a “eterna novidade do mundo”, como no poema de Alberto Caeiro. O mundo parece, então, que adquiriu nova cor, já que durante a reclusão e a tristeza tudo variava em tons lilases.

Há quem diga que ninguém é feliz ou infeliz. Mas a felicidade pode ser um aprendizado. Para quem sabe ser feliz, cada novo despertar é uma alegria por si só. Não estar se sentindo triste também já é uma alegria. Já notou? Assim, é fácil entusiasmar-se com um “simples” botão de flor, um “simples” café da manhã, um “simples” edredom, um “simples” filme no cinema, uma “simples” peça de teatro, um “simples” livro, uma “simples” visita, um “simples” romance, um “simples” papo de amigo, um “simples” carinho, um “simples” trabalho, um “simples” convite, uma “simples” viagem, um “simples” show. Se você parar para reparar no detalhe, nada é assim tão simples. É tudo muito, muito complexo.

A banalidade está no olhar de quem olha para o espetáculo da vida com indiferença ou soberba. O extraordinário está nos olhos de quem se permite ver. Se você não tem reparado bem, experimente olhar para pequenos milagres com lente de aumento. Um mosquito pode parecer um monstro intergaláctico. O desabrochar de uma flor pode parecer o início de uma nova geração. E, lembre-se, você tem o poder de escolha: se uma abelhinha qualquer aparecer diante do seu rosto, você pode simplesmente afugentá-la ou, quem sabe, arriscar-se a segui-la e descobrir onde está o mel.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (texto registrado/direitos autorais reservados).

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Cena Carioca



Estava hoje eu de manhã bem cedo no ônibus, digo, fisicamente eu estava ali, mas minha mente devaneava. Estava completamente absorvida pelo livro que eu lia, sobre a história de uma somaliana vivendo sob o islamismo. Quando, de repente, o motorista, de óculos escuros, levantou a voz e começou a falar com os passageiros: - “Senhores passageiros, desculpem incomodar o silêncio da sua viagem, mas o motorista que vos fala, esse cara de 1,60 m aqui...”

Com a voz do motorista rompendo o silêncio, levei um susto. De súbito, interrompi minha leitura, que tratava do regime imposto pelo fundamentalismo muçulmano. Voltei minha concentração para o momento presente: eu estava no Centro do Rio de Janeiro. Retirei os olhos do livro e notei que o motorista nos falava mirando-nos pelo retrovisor.

Meu coração deu um pulo, pensei: “- Oh, meu Deus! Será que o motorista vai dizer que é um assalto? Pode ser um terrorista? Será que vai se levantar atirando em todo mundo? O que está acontecendo?” Nunca vi um motorista se dirigir aos passageiros como quem fala a uma platéia... Interrogações se passavam em flashes em minha cabeça. E ele continuou: - “...o motorista que vos fala, esse cara de 1,60 m aqui é... Candidato a vereador! Se vocês não tiverem em quem votar, se vocês forem jogar o voto fora, lembrem-se de mim, votem em mim.” Assim, anunciou seu nome, número e referência parental. E prosseguiu com a propaganda: “Eu ganho muito pouco, meu salário nunca passou de dois mil e poucos reais. Lembrem-se de mim, votem em mim: motorista, cobrador e camelô.” Espere aí, camelô? E encerrou o discurso: “Desculpem atrapalhar o silêncio da sua viagem. Obrigado pela atenção.”

Relaxei, respirando aliviada... Então, tive um acesso de risos, assim como a maior parte dos passageiros. Depois, reparei que ao lado do motorista havia uma bandeja com saquinhos de amendoins que ele vendia, como “o passatempo da sua viagem”. Era impossível conter as risadas. Ria de mim mesma, pelo alívio, afinal, meu ônibus não estava sendo sequestrado. Ria pela minha situação tragicômica de ser pega de surpresa por um discurso engraçado (mas que pretendia ser sério) enquanto, em meu inconsciente, estava o tempo todo tensa, com medo da violência que aflige Rio e Niterói, às vezes das formas mais improváveis. Ria, porque o irreverente motorista carioca simplesmente saltou aos meus olhos enquanto eu lia sobre aflições das guerras civis do Leste da África. Eu ria, enfim, por toda a atuação inusitada do motorista-camelô-candidato-a-vereador.

Pensei alto: - “Ufa! Ainda bem que não era um assalto.” E a senhorinha ao meu lado retrucou: -“Que nada, minha filha, ele quer entrar para a política... Agora é que o assalto vai começar...” Desci do ônibus e fui trabalhar, rindo... Porque é melhor rir do que chorar.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Conto


Crônica de um salto alto

Eu fiquei assim desconfiado, não entendendo porque ela me deixou de lado. Estávamos juntinhos e muito bem. Saíamos com frequência, dançávamos na pista, andávamos pelo shopping, íamos ao cinema, ao teatro e a bons restaurantes.

Um dia, de repente, sem avisar, ela simplesmente me colocou na prateleira junto de outros companheiros e não veio mais me pegar. Acho que não quer mais saber de mim. Aqui me vejo em grande solidão, sinto falta da ginga, do passo-a-passo e do cruzar de pernas. Às vezes ela sentava no sofá, inclinava o corpo para trás, apoiava as pernas no pufe e eu ficava ali, aparecendo para valer, só me exibindo.

Sinto falta do sucesso, do glamour, das amigas dela perguntando por mim, de onde eu era, qual a minha procedência, desejando encontrar um igual. Mas nós éramos o par-perfeito, o número certo, o encaixe preciso. A curva do pé dela e a curva do meu corpo – tudo havia se adaptado.

Ouvi dizer que ela levou um tombo... Não venham me culpar, dizer que não tive firmeza, porque não estávamos juntos nesse dia, ora, não foi comigo que ela caiu! Eu estava na lavanderia... tenho um álibi. E não foi só a queda, pelo que disseram, parece que rompeu um ligamento. Mas eu não queria que ela rompesse nossa ligação, que era tão profunda. Como pode alguém romper assim sem nem dar uma explicação? Espantei-me com a frieza e a facilidade para esquecer. Será que me trocou por outro? Depois disso, ficou uns dias usando uma bota esquisita, e quase não saía da cama, acho que estava deprimida com sua decisão. Ficava com aquela bota tipo Robocop numa perna só, acho que era uma maneira esdrúxula de me provocar, talvez só quisesse chamar a minha atenção.
...

Ora, vejam só, lá vem ela... segurando uma sacola nova, chegou em casa e foi retirando de dentro uma caixa de sapatos. Abriu e lá estavam elas: duas sapatilhas brilhantes e com um laço de fita em cada ponta. Puro exibicionismo! Olha lá! Cadê o salto? Não tem salto? Então é uma revolução! Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? Ela experimenta e desfila pela casa, diz que está confortável. Mas ela revela que não consegue me esquecer, que sente minha falta... Ah, eu já desconfiava..
...
Logo logo há de se arrepender. Mas, enquanto isso, fico aqui na minha solidão, abandonado nessa prateleira, de frente para a parede, onde me sinto de castigo. Óh, céus! O que fiz para merecer isso? Meus companheiros de quarto sempre me avisaram que ela era assim mesmo, que logo logo se fartaria da minha companhia e iria me abandonar. Diziam que suas predileções eram sazonais, que eu não duraria mais que uma estação. Eu não queria acreditar, mas confesso que em nossos breves, porém, intensos encontros, eu tinha muito medo de que ela pudesse me esquecer de uma hora para a outra. Mas eu sempre tive esperanças de que nossa história fosse para valer, que nossa relação nunca sairia de moda.

Vejo que eu estava mesmo iludido, nesses dias ela não tem sequer olhado para mim. Passa por mim direto, parece que nem me percebe. Não chegamos a ter uma briga, mas ela se comporta como se estivéssemos de mal. E agora, que também já deixou de lado a bota Robocop, fica para lá e para cá desfilando com aquelas novas sapatilhas prateadas reluzentes. Calçado novo, cheiro de novo, eu sei. Mas pode ter o brilho que for, esse qualquerzinho, desprovido de salto, nunca conseguirá me substituir à altura! Ele nunca conseguirá valorizá-la como eu a valorizo! Sei dar o devido valor à sua coxa torneada, ao seu bumbum arrebitado, à sua panturrilha jovial. Ele nunca massageará o seu ego como eu massageio! Ele não saberá reforçar sua confiança em si mesma, a sua elegância. Jamais conseguirá promover a sua entrada triunfal quando chega numa festa, marcando presença. Ele não terá o impulso necessário para elevá-la quando ela mais precisar de uma postura imponente.

Mas tudo bem, talvez ela tenha que descobrir isso por si mesma. Deixem-na! Deixem-na desfilando por aí com sua rasteirinhazinha! Deixem-na descer alguns centímetros. Quando ela perceber que eu sou o parceiro que a coloca para cima e não a decepciona, ela vai voltar. Tudo bem, devo reconhecer que nunca fui perfeito, já a feri, já a machuquei, deixei até mesmo que bolhas se formassem, mas não foram marcas profundas. E, além do mais, ela não deixava barato, quando isso acontecia... Ela me deixava de lado, podia ser a festa que fosse, e me trocava por confortáveis Havaianas, enquanto me esnobava. Eu já paguei pelo que fiz e acho que foi o suficiente. Essas meras picuinhas do dia-a-dia não justificam todo esse desprezo agora.
...

Ela continua a maior parte do tempo sozinha na cama. Será que está deprimida? Já estou ficando preocupado. Lá vem uma amiga dela para visitá-la! A amiga passa por mim e eu grito: - Pegue-me! Leve-me! Peça-me emprestado! Veja como sou lindo! Vou fazer você se sentir o máximo! Leve-me! Por favooor! – Eu suplico, mas é inútil. Acho que ela não pode me ouvir... Essa vida sobre a prateleira está extremamente entediante, quase já não consigo suportar. A amiga senta na beirada da cama dela e as duas conversam, trocam confidências, mas nem comentam sobre mim, acho que desconfiam de que eu possa estar prestando atenção no papo.

A amiga se levanta e se despede, desejando boa recuperação, passa por mim, olha na minha direção e volta. – Amiga, tenho uma festa no sábado, você pode me emprestar esse daqui? Combina perfeitamente com o meu vestido azul marinho e nós calçamos o mesmo número. Deixe-me experimentar, acho que vai caber. – E a amiga me pega, me experimenta e, não encontrando oposição, diz que vai me usar. Saber que ainda desperto o interesse de alguém me faz sentir um pouco aliviado, não vejo a hora de sair para dar umas voltinhas. Já que ela não me quer, tem quem queira, vou dar um “rolé”.
...

Três semanas e meia e já fui devolvido... será que não prestei? Aproveitei um bocado, é verdade. Mas se o bom filho à casa torna, o bom amante também. Pude experimentar outra pele, outro jeito de caminhar, outras formas do corpo, especialmente da sola e do peito do pé, mas acho que eu já estava adaptado à minha antiga dona, minhas formas se encaixavam na dela. Assim, não pude demonstrar tanta eficiência à sua amiga, acho que nossas formas não se ajustavam tão bem. A verdade é que meu caso com minha antiga dona não era mera acomodação, tratava-se mais de uma predileção. Mas ela continuou me deixando na prateleira.
...

Dois meses já se passaram desde que a gente se separou. Ela viajou nesse meio tempo e já voltou. Ultimamente ela tem estado bastante ocupada. Fica de um lado para o outro, num corre-corre estonteante. É o momento da prova real: se é verdade aquela história do tombo, acho que já passou um bom tempo, já deu para ela se recuperar do trauma. Se ela não me esqueceu, vai voltar para mim. Opa! Lá vem ela! Vou fingir que não estou nem aí... Vou me fazer de difícil. Desconfio de que ela tenha se arrependido. Então, agora que venha choramingar e pedir desculpas. Está pensando o que? Que eu estou parado numa prateleira só esperando por ela? Acha que pode pisar em mim? Comigo não!

Ela veio se aproximando de mim, olhou-me com olhos de saudade. Veio e me pegou com jeitinho. Não resisti. Ela me calçou e foi como eu sonhei durante todo esse tempo: o encaixe perfeito. Fiquei aos seus pés. Ela cresceu doze centímetros, mas fui eu quem me senti poderoso. Vamos, vamos passear, meu amor. Vamos, que a rua nos espera! Não vamos perder mais tempo que nós temos um mundo inteiro pra percorrer! Vamos que a festa é nossa! Só me promete uma coisa? Não desce do salto nunca mais, tá?
...
E foi assim que a gente reatou o nosso caso. Depois disso, a gente ainda se estranhou um pouquinho, ela andou pisando de mau jeito em umas pedras portuguesas nessas calçadas ingratas e, assim, foi aos poucos me tirando umas lasquinhas. Teve até uma vez que eu não aguentei e deixei escapar o meu saltinho, e ela teve que me entregar ao sapateiro para conserto. Mas isso não foi nada demais, ela entende que a culpa não é minha. Ela sabe que quem fez essas calçadas era homem e podia até entender bastante de arquitetura e urbanismo, mas não entendia nada de mulher e muito menos de salto alto.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).

E o seu sapato alto? O que ele diria se pudesse falar? ;)


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Impressões de Paris

Fantástica Cidade Maravilhosa

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Poesia


Tudo bem que as solas do sapato estejam gastas,
Que as bochechas estejam meladas de tantas lágrimas,
Que as rugas brotem com uma rapidez incrível,
Que a sujeira se acumule embaixo das unhas.
Tudo bem que a mão esteja áspera,
Que as costas doam,
Que os joelhos ardam,
Que o joanete exploda,
Que os pés cansem.
Tudo bem que o coração aperte,
Que o olhar se perca,
Que o pensamento devaneie,
Que a vontade seja incontrolável,
Que o sucesso seja passageiro,
Que a felicidade seja efêmera,
Que a tristeza seja intensa,
Que a decepção seja cruel,
Que a perda seja irreparável.
Tudo bem que a incerteza surja,
Que o arrependimento golpeie,
Que o medo ameace,
Que as flores murchem,
Que o desejo se esvaia.
Desde que alguns sonhos se realizem,
os sorrisos sejam sinceros,
o amor seja puro,
o coração seja grande,
a alma seja limpa,
os olhos sejam flamejantes,
o que mais importa?
Eu vivi!

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).

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Impressões de Paris

Alívio

A Beleza das Rugas

sábado, 28 de maio de 2011

O estado de flow

Um caminho tanto para a felicidade pessoal
como para a produtividade empresarial.

Flow é estar completamente envolvido em uma atividade em si. O ego desaparece. O tempo voa. Toda ação, movimento e pensamento seguem naturalmente. Todo o seu ser está envolvido e você está usando o máximo de suas habilidades.”
Mihaly Csikszentmihalyi


Fazer e acontecer. Existem momentos na vida em que a gente se pega envolvido numa tarefa de tal maneira que a intensidade da concentração empregada não nos permite perceber a passagem do tempo. Assim, horas parecem minutos. Às vezes ocorre com você? O pesquisador Mihaly Csikszentmihalyi introduziu esse estado de consciência em sua teoria de flow (fluxo). Os estudos indicam que, nos momentos em que nos encontramos totalmente imersos em uma tarefa, com prazer e envolvimento absolutos, estamos vivenciando a sensação de plena felicidade, em que tudo parece simplesmente fluir.

O estado de flow ocorre quando a pessoa está fazendo algo que é significante para ela mesma, ainda que pareça insignificante para o mundo ao redor. Como exemplo, podemos dizer que uma pessoa envolvida em um passatempo solitário (como montar castelinhos com palitos de dentes) ou uma pessoa atuando em uma atividade empresarial (com grande influência sobre a vida de terceiros) sentiriam a mesma satisfação, desde que estivessem fazendo o que lhes trouxesse prazer e contentamento. Dessa forma, teriam o mesmo benefício, ou seja, receberiam uma recompensa intrínseca, porque a própria fruição do estado de flow seria o prêmio, fruto do que chamamos de atividade gratificante.

Para entender melhor é preciso perceber que, quando estamos dormindo, comendo algo saboroso ou assistindo televisão, embora estejamos obtendo prazer, não estamos vivenciando o flow. Isso porque o estado de flow, para acontecer, necessita que haja dois vértices: o desafio e a habilidade, senão o que ocorre é a apatia. Ou seja, quando estamos nos sentindo desafiados a fazer algo que sabemos que temos competência para fazer, e, finalmente, vamos lá e fazemos, podemos sentir a satisfação provocada pela tríade: MOTIVAÇÃO + CAPACIDADE + AÇÃO. Nesse momento, vivenciamos o estado de flow, que representa mais que prazer, pois o que ocorre, na verdade, é uma mudança de perspectiva – em que o ego desaparece.

Durante o estado de flow, passam despercebidas as sensações de fadiga, fome, dor. Podemos passar horas concentrados na tarefa, apenas vivenciando intensamente o momento, focados no presente, sem reflexão sobre passado e futuro. Apenas o aqui e o agora importam. Empresas em todo o mundo utilizam a teoria do flow para estabelecer um ambiente de trabalho que estimule equipes e faça emergir talentos de funcionários. O autoconhecimento é importante nesse processo, pois é imprescindível que a pessoa saiba do que gosta realmente de fazer, o que a instiga, o que é significante para ela mesma, pois só assim ela poderá se envolver numa tarefa de tal forma a se sentir completamente absorvida por ela, experimentando o flow.

Em que momentos da sua vida você se sente tão pleno, tão realizado que parece gravitar de tanto envolvimento e prazer com uma ocupação? Pode ser jogando bola, escrevendo, criando, trabalhando, enfim, praticando qualquer atividade física ou intelectual. O importante é que tal tarefa represente um desafio para você, mas um desafio para o qual você se sinta competente, habilidoso, preparado.

É no estado de flow que a pessoa dá o melhor de si, vai até aonde é capaz, implementa e esgota todas as suas energias concentradas para aquele único propósito, pois aquilo o instiga, o faz feliz e realizado. Há quem experimente o estado de flow somente em determinados momentos de lazer, quando estão envolvidos em seu passatempo preferido, por exemplo. Entretanto, o ideal seria que cada um pudesse trabalhar numa atividade em que vivenciasse o estado de flow, assim, teríamos equipes mais engajadas e criativas – e uma sociedade mais produtiva. Afinal, a maioria de nós passa a maior parte do tempo de vida no ambiente de trabalho.

A questão é que tal situação hipotética e ideal para se concretizar dependeria do autoconhecimento de cada indivíduo, de oportunidades no mercado de trabalho, adaptações salariais, estímulo à criatividade e desenvolvimento da autonomia para tomada de decisões. Se fazer o que se gosta é um caminho para a felicidade, então, fazer o que nos permite vivenciar o estado de flow durante ao menos uma parte do tempo em que passamos no trabalho é um tapete vermelho estendido em direção ao sucesso. Não necessariamente o sucesso entendido como reconhecimento público, mas percebido como a visão que a pessoa tem de si mesma no sentido de se sentir realizada e grandiosa, produzindo algo que dá sentido à própria existência.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).


Leia mais sobre este assunto em: Café Coach  Arata Academy  Tomás Garcia  Renato Miranda  Wikipédia

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