O papel deles
Ando pelas ruas do Centro do Rio. Estou irritada. Um, dois, três, quatro... dez! Não, não estou contando até dez para ver se consigo controlar meu nervosismo. Estou contando o número de pessoas distribuindo panfletos pelas calçadas. Em uma calçada contei dez. Comecei o meu trajeto cotidiano respondendo “não, obrigada” a cada mão que me oferecia as filipetas barulhentas. Tec, tec, tec, tec... Por que os mocinhos chacoalham a papelada, batem uns papeizinhos contra os outros fazendo o irritante barulhinho? Tudo bem que o barulho não é alto. Em princípio, é até inaudível. Mas conforme o cidadão continua seu itinerário e esbarra não com um, mas com dez, vinte, trinta mocinhos e mocinhas fazendo a mesma batida “tec, tec, tec”, o discreto barulhinho começa a invadir os tímpanos de tal forma que o crânio chega a latejar de nervoso como se ouvisse um tambor repetindo o refrão horas a fio.
Onze, doze. Continuei a ser delicada e, gentilmente, eu dizia “não, obrigada”. Isso era o que eu dizia, mas o que eu pensava não era bem assim: - Puxa vida! Por que tanto querem que eu apanhe esses bagulhos? Para logo em seguida jogar no lixo? Ou fazer como muitos mal-educados que jogam no chão mesmo? Que tanto é que me empurram promoções, créditos, dinheiro fácil? Haja mão pra segurar tanto papel! Eu poderia montar um grande painel no fim do dia juntando cada pedacinho que querem me dar pelo caminho.
Vieram outros. Treze, quatorze... dezessete. Impaciente, comecei a desviar dos seguintes. Eles pareciam não se importar em ser ignorados, como se estivessem acostumados a qualquer tipo de reação. Na mesma proporção em que minha tolerância ia diminuindo, o extrapolar de limites deles aumentava: começavam a enfiar o braço diante de mim, como se eu fosse pegar a papeleta de qualquer maneira. Querem que o caminhante abra as mãos custe o que custar. Estendem o braço, chacoalham as mãos, aparentemente, tentando encaixar a filipeta sob as axilas dos desavisados!
Começo a caminhar apressadamente, na tentativa de fugir de tamanha perseguição. Vinte, vinte e um, vinte e dois... Depois de tanta insistência, até que eles mereciam uma chance! Talvez eu pegasse o panfleto seguinte. Talvez eu até o lesse. Quem sabe até o levasse em consideração. Quiçá pediria outro! O pior é que, com sacolas e livros em ambas as mãos, não posso estender os braços para atender às insistentes súplicas dos rapazes e moças que não desistem de me apontar os braços e oferecer-me os barulhentos papéis – neste momento, o tec, tec, tec já soa como um TUM, TUM, TUM enlouquecedor. Em minhas mãos ocupadas, não sobra espaço entre meus dedos nem para mais um fio de cabelo, ainda assim, os inexoráveis trabalhadores colocam o braço diante de mim, provocam um esbarrão e pensam que encontrarão uma fórmula secreta capaz de permitir o encaixe do tão importante papel entre o meu anelar e o mindinho. Ou talvez imaginem que o sujeito, de maneira sobrenatural, fará brotar um terceiro braço!
Trabalhando com entusiasmo e energia, a sincronia dos trabalhadores é perfeita. Batem papel contra papel no mesmo ritmo, no mesmo tom, fazendo “tec, tec, tec, tec”. Estendem o braço numa mesma coreografia, dançando no grande teatro formado pelas calçadas do Centro do Rio de Janeiro. O público é imenso, lota as praças, as esquinas, as retas e as curvas. Não há distinção entre platéia e camarote. Onde quer que o espectador esteja posicionado, por onde quer que esteja passando, tornar-se-á também protagonista, recebendo o seu papel – com ou sem trocadilho.
Todos se irritam, ninguém reclama. Ser incomodado pelos papeizinhos batucantes já se tornou algo normal, que faz parte do dia-a-dia do carioca que transita pelo Centro. Como tudo na vida, a gente se acostuma. Mas a gente não se conforma. Por dentro, aquele barulhinho irritante vai transformando nosso rosto ameno numa cara carrancuda. E se os panfletinhos desaparecessem de uma hora para a outra? Caminhar pelo Centro se tornaria sem graça não fosse o fundo musical “tec, tec, tec, tec”? A coreografia ensaiada pelos cerca de dez dançarinos de cada quadra faria falta nas caminhadas pelo comércio? Quem sentiria falta? Quem notaria a diferença? Certamente, se não fossem os tais, estas linhas não poderiam ser escritas e esta sua leitura, meu caro, não estaria sendo feita. E quem se importaria? Eu? Você? Quem sabe? Não se dá falta daquilo que não se conhece.
Chega de prosa. Vencida pelo cansaço, resolvi, não sem dificuldade, pegar um panfleto. Aceitei a minha sina. - O que têm vocês pra me dizer de tão interessante? - gritei em pensamento. – O que tem escrito neste aqui, afinal? Ah, sim... Quer saber? Eu poderia revelar agora, mas isso já dá uma outra história...
Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).
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