segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Conto


Crônica de um salto alto

Eu fiquei assim desconfiado, não entendendo porque ela me deixou de lado. Estávamos juntinhos e muito bem. Saíamos com frequência, dançávamos na pista, andávamos pelo shopping, íamos ao cinema, ao teatro e a bons restaurantes.

Um dia, de repente, sem avisar, ela simplesmente me colocou na prateleira junto de outros companheiros e não veio mais me pegar. Acho que não quer mais saber de mim. Aqui me vejo em grande solidão, sinto falta da ginga, do passo-a-passo e do cruzar de pernas. Às vezes ela sentava no sofá, inclinava o corpo para trás, apoiava as pernas no pufe e eu ficava ali, aparecendo para valer, só me exibindo.

Sinto falta do sucesso, do glamour, das amigas dela perguntando por mim, de onde eu era, qual a minha procedência, desejando encontrar um igual. Mas nós éramos o par-perfeito, o número certo, o encaixe preciso. A curva do pé dela e a curva do meu corpo – tudo havia se adaptado.

Ouvi dizer que ela levou um tombo... Não venham me culpar, dizer que não tive firmeza, porque não estávamos juntos nesse dia, ora, não foi comigo que ela caiu! Eu estava na lavanderia... tenho um álibi. E não foi só a queda, pelo que disseram, parece que rompeu um ligamento. Mas eu não queria que ela rompesse nossa ligação, que era tão profunda. Como pode alguém romper assim sem nem dar uma explicação? Espantei-me com a frieza e a facilidade para esquecer. Será que me trocou por outro? Depois disso, ficou uns dias usando uma bota esquisita, e quase não saía da cama, acho que estava deprimida com sua decisão. Ficava com aquela bota tipo Robocop numa perna só, acho que era uma maneira esdrúxula de me provocar, talvez só quisesse chamar a minha atenção.
...

Ora, vejam só, lá vem ela... segurando uma sacola nova, chegou em casa e foi retirando de dentro uma caixa de sapatos. Abriu e lá estavam elas: duas sapatilhas brilhantes e com um laço de fita em cada ponta. Puro exibicionismo! Olha lá! Cadê o salto? Não tem salto? Então é uma revolução! Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? Ela experimenta e desfila pela casa, diz que está confortável. Mas ela revela que não consegue me esquecer, que sente minha falta... Ah, eu já desconfiava..
...
Logo logo há de se arrepender. Mas, enquanto isso, fico aqui na minha solidão, abandonado nessa prateleira, de frente para a parede, onde me sinto de castigo. Óh, céus! O que fiz para merecer isso? Meus companheiros de quarto sempre me avisaram que ela era assim mesmo, que logo logo se fartaria da minha companhia e iria me abandonar. Diziam que suas predileções eram sazonais, que eu não duraria mais que uma estação. Eu não queria acreditar, mas confesso que em nossos breves, porém, intensos encontros, eu tinha muito medo de que ela pudesse me esquecer de uma hora para a outra. Mas eu sempre tive esperanças de que nossa história fosse para valer, que nossa relação nunca sairia de moda.

Vejo que eu estava mesmo iludido, nesses dias ela não tem sequer olhado para mim. Passa por mim direto, parece que nem me percebe. Não chegamos a ter uma briga, mas ela se comporta como se estivéssemos de mal. E agora, que também já deixou de lado a bota Robocop, fica para lá e para cá desfilando com aquelas novas sapatilhas prateadas reluzentes. Calçado novo, cheiro de novo, eu sei. Mas pode ter o brilho que for, esse qualquerzinho, desprovido de salto, nunca conseguirá me substituir à altura! Ele nunca conseguirá valorizá-la como eu a valorizo! Sei dar o devido valor à sua coxa torneada, ao seu bumbum arrebitado, à sua panturrilha jovial. Ele nunca massageará o seu ego como eu massageio! Ele não saberá reforçar sua confiança em si mesma, a sua elegância. Jamais conseguirá promover a sua entrada triunfal quando chega numa festa, marcando presença. Ele não terá o impulso necessário para elevá-la quando ela mais precisar de uma postura imponente.

Mas tudo bem, talvez ela tenha que descobrir isso por si mesma. Deixem-na! Deixem-na desfilando por aí com sua rasteirinhazinha! Deixem-na descer alguns centímetros. Quando ela perceber que eu sou o parceiro que a coloca para cima e não a decepciona, ela vai voltar. Tudo bem, devo reconhecer que nunca fui perfeito, já a feri, já a machuquei, deixei até mesmo que bolhas se formassem, mas não foram marcas profundas. E, além do mais, ela não deixava barato, quando isso acontecia... Ela me deixava de lado, podia ser a festa que fosse, e me trocava por confortáveis Havaianas, enquanto me esnobava. Eu já paguei pelo que fiz e acho que foi o suficiente. Essas meras picuinhas do dia-a-dia não justificam todo esse desprezo agora.
...

Ela continua a maior parte do tempo sozinha na cama. Será que está deprimida? Já estou ficando preocupado. Lá vem uma amiga dela para visitá-la! A amiga passa por mim e eu grito: - Pegue-me! Leve-me! Peça-me emprestado! Veja como sou lindo! Vou fazer você se sentir o máximo! Leve-me! Por favooor! – Eu suplico, mas é inútil. Acho que ela não pode me ouvir... Essa vida sobre a prateleira está extremamente entediante, quase já não consigo suportar. A amiga senta na beirada da cama dela e as duas conversam, trocam confidências, mas nem comentam sobre mim, acho que desconfiam de que eu possa estar prestando atenção no papo.

A amiga se levanta e se despede, desejando boa recuperação, passa por mim, olha na minha direção e volta. – Amiga, tenho uma festa no sábado, você pode me emprestar esse daqui? Combina perfeitamente com o meu vestido azul marinho e nós calçamos o mesmo número. Deixe-me experimentar, acho que vai caber. – E a amiga me pega, me experimenta e, não encontrando oposição, diz que vai me usar. Saber que ainda desperto o interesse de alguém me faz sentir um pouco aliviado, não vejo a hora de sair para dar umas voltinhas. Já que ela não me quer, tem quem queira, vou dar um “rolé”.
...

Três semanas e meia e já fui devolvido... será que não prestei? Aproveitei um bocado, é verdade. Mas se o bom filho à casa torna, o bom amante também. Pude experimentar outra pele, outro jeito de caminhar, outras formas do corpo, especialmente da sola e do peito do pé, mas acho que eu já estava adaptado à minha antiga dona, minhas formas se encaixavam na dela. Assim, não pude demonstrar tanta eficiência à sua amiga, acho que nossas formas não se ajustavam tão bem. A verdade é que meu caso com minha antiga dona não era mera acomodação, tratava-se mais de uma predileção. Mas ela continuou me deixando na prateleira.
...

Dois meses já se passaram desde que a gente se separou. Ela viajou nesse meio tempo e já voltou. Ultimamente ela tem estado bastante ocupada. Fica de um lado para o outro, num corre-corre estonteante. É o momento da prova real: se é verdade aquela história do tombo, acho que já passou um bom tempo, já deu para ela se recuperar do trauma. Se ela não me esqueceu, vai voltar para mim. Opa! Lá vem ela! Vou fingir que não estou nem aí... Vou me fazer de difícil. Desconfio de que ela tenha se arrependido. Então, agora que venha choramingar e pedir desculpas. Está pensando o que? Que eu estou parado numa prateleira só esperando por ela? Acha que pode pisar em mim? Comigo não!

Ela veio se aproximando de mim, olhou-me com olhos de saudade. Veio e me pegou com jeitinho. Não resisti. Ela me calçou e foi como eu sonhei durante todo esse tempo: o encaixe perfeito. Fiquei aos seus pés. Ela cresceu doze centímetros, mas fui eu quem me senti poderoso. Vamos, vamos passear, meu amor. Vamos, que a rua nos espera! Não vamos perder mais tempo que nós temos um mundo inteiro pra percorrer! Vamos que a festa é nossa! Só me promete uma coisa? Não desce do salto nunca mais, tá?
...
E foi assim que a gente reatou o nosso caso. Depois disso, a gente ainda se estranhou um pouquinho, ela andou pisando de mau jeito em umas pedras portuguesas nessas calçadas ingratas e, assim, foi aos poucos me tirando umas lasquinhas. Teve até uma vez que eu não aguentei e deixei escapar o meu saltinho, e ela teve que me entregar ao sapateiro para conserto. Mas isso não foi nada demais, ela entende que a culpa não é minha. Ela sabe que quem fez essas calçadas era homem e podia até entender bastante de arquitetura e urbanismo, mas não entendia nada de mulher e muito menos de salto alto.

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).

E o seu sapato alto? O que ele diria se pudesse falar? ;)


Continue com Mania de Ser Feliz! Leia outros textos deste blog:

Impressões de Paris

Fantástica Cidade Maravilhosa