sábado, 22 de agosto de 2009

Um conto para um fim de semana chuvoso...

Tudo planejado

Tudo planejado. Eu havia guardado meu caderno de poesias na mala, junto do meu cobertor e do relógio. Ah! E é claro! Eu não poderia me esquecer do guardanapo. Vasculhei meu armário em busca de algum objeto importante que eu pudesse estar deixando para trás, mas não encontrei mais nada. Pendurei a mala no ombro e atravessei a porta, no entanto, hesitei e quis voltar. Dei mais uma espiada pelo meu quarto, passei os olhos ao redor. Não, não faltava coisa alguma e saí, mas fui embora ainda com a sensação de que havia esquecido alguma coisa. Já ia escurecer e eu precisava acelerar ou não iria dar tempo de fazer tudo conforme eu queria. Fui embora de casa deixando a porta destrancada de propósito. Desse modo, o primeiro que aparecesse não teria problemas para entrar. Provavelmente, logo chegaria alguém desesperado por uma pista. E eu não queria dificultar o trabalho de quem quer que fosse. Eu já não estaria mais aqui mesmo e, para mim, pouco importava o resultado disso tudo.

O elevador demorou mais do que de costume e resolvi descer pelas escadas. Aquelas câmeras malditas estavam por toda parte, filmando cada degrau que eu descia, gravando minha ida para o poço. Estavam sendo registrados os últimos momentos de uma vida ingrata. Ali, descendo e olhando para as escadas cinzas, ficava com a idéia fixa no circuito interno de vídeo e me lembrava de que nada poderia me proteger de mim mesmo. Reconheci, naquele momento, a minha própria loucura: eu sempre preferi as surpresas, ainda que fossem amargas. Essa era a minha loucura e também a minha contradição. Quem diria que seriam as próprias surpresas amargas que me fariam desistir de tudo? Justo eu que sempre achei que me conhecia e que seria incapaz de fraquejar e me entregar! Eu me traí.

Eram dez horas da noite quando finalmente cheguei naquele bairro sombrio, mas cheio de prédios enormes. Milhares de moradores, muitas vidas, mas ninguém na rua, exceto um mendigo com quem esbarrei. Era um velho que me fuzilou com os olhos quando eu ia passando. O olhar penetrante daquele ancião incomodou-me e eu tentei livrar-me dele, mas já era tarde... sua imagem ficou comigo e carrego ainda em minha lembrança seu semblante bem nítido. Aquele homem parecia saber de alguma coisa. De alguma forma, ele lia meus pensamentos e eu tive a certeza de que ele suspeitava do que eu ia fazer.

Procurei o mapa no bolso e nada! Ah! Eu sabia! Sabia que estava esquecendo alguma coisa! Revirei a mala e nada. Mas agora já era tarde e eu não poderia mais voltar atrás. Eu lembrava mais ou menos o nome da rua, sabia o número e o mais importante: eu já havia estado ali antes. Fazia muito tempo, mas eu tinha que encontrar o lugar, tinha que ser lá. Então, eu andei e fui procurando. Fui acelerando meus passos por aquelas ruas escuras, enlameadas, tentando seguir a intuição, lembrando aqui e ali de algum detalhe, de algum parque ou mercado que pudesse me orientar. Mas estava tudo muito mal iluminado e eu mal conseguia enxergar os letreiros e os números. Andei por uma hora e não encontrei mais ninguém. Estava ficando muito frio, mas, por sorte, como que por mágica, eis que surge diante de mim o local perfeito para a minha experiência! Exatamente onde planejei. Era um prédio altíssimo que havia sido abandonado por uma construtora irregular.

Era ali que eu iria morar se todos os nossos planos não tivessem ido pelos ares. Nunca fui indenizado. Alimentei meus sonhos e tudo virou poeira como aquela que encobre as paredes daquele miserável edifício. Tinha que ser ali. Foi onde tudo começou; era onde eu havia determinado para ser o fim. Sem surpresas, porque, a essa altura, eu já havia contrariado todo o meu propósito de vida. Planejei e fiz questão de armar tudo para que não houvesse falhas.

Eu e Elisabeth planejamos família e uma vida e tanto. Sonhávamos em morar juntos naquele prédio, em um apartamento que custamos tanto a escolher. Não que pudéssemos nos dar ao luxo de fazer grandes escolhas; na verdade, foi difícil encontrar um imóvel que pudéssemos comprar. Nós tínhamos, é certo, algum dinheiro... o suficiente. Mas vivíamos fazendo economias para realizar nossos sonhos quanto antes. É... houve o tempo em que tínhamos pressa. Mas agora eu pensava: “para que a pressa? Não se vai a lugar nenhum mesmo...”

Peguei o caderno. Nele, eu havia escrito para minha querida Lisa. Eram poemas feitos na juventude, quando eu morria de amores por ela tanto quanto morro ainda hoje. Eu já sabia quase todos de cor, mas fazia questão de tê-los comigo naquelas folhas rabiscadas. Preferia ler a declamar, porque cada traço, cada letra, cada linha me transportava de volta àqueles tempos em que escrevia poesias e achava que a vida era doce. Gosto de abrir o caderno e me lembrar das vezes em que ela lia meus versos. Lisa mal sabia que era ela o próprio verso.

Fui folheando o caderno até que cheguei à página do meio. "A página do meio marca o fim da minha vida, que não se acaba hoje, mas acabou-se naquele dia", falei comigo mesmo. Foi quando eu escrevia a última linha daquela manchada página do meio que eu recebi a notícia. Depois, todas as folhas permaneceram em branco. Nunca mais escrevi poesia. Sucumbi aos horrores da angústia de perder o amor da minha vida.

Debrucei-me sobre o caderno e me derramei em lágrimas como um menino perdido. O caderno borrado depois de tanto chorar sobre ele, comecei a esbravejar e não pude entender naquele momento o vazio que me preenchia. Parecia que me faltava o coração. Passei os últimos anos arquitetando a morte corajosa que encerraria com tudo por vez. Poderiam julgar-me um perdedor, mas eu acreditava que já levava uma vida covarde desde que meu amor se foi. Eu precisava de um único ato de coragem: parar de proteger a mim mesmo. Precisava dar um fim àquela vida vazia.

Eram onze e meia. Meia-noite eu iria me jogar. Fui subindo as escadas apodrecidas daquele prédio gigantesco. A cada andar, a agonia aumentava, parecia que me haviam estraçalhado a alma e um frio na barriga me consumia. Pela primeira vez naquele dia, senti medo. Tive dúvida do que fazia, mas eu não poderia abrir mão de tudo que planejei durante anos. Queria uma morte que fosse um ato de amor. Que significasse algo para mim e que Elisabete pudesse compreender, onde quer que estivesse. O prédio, o caderno, o guardanapo com seu telefone... foi o pouco que restou de nós... ela entenderia. Mas, naquele momento, tive dúvida. Comecei a pedir um sinal. Pensei na Lisa e mentalizei bem forte que precisava acabar com aquilo tudo. Que eu iria até o fim, que depois do fim não haveria mais dúvida. Ainda assim, permaneci confuso, o peito apertando, a garganta doendo e um choro contido me remexendo por dentro.

Cheguei até a cobertura do prédio. Estava muito frio. Recostei-me sobre uma laje, tirei o cobertor da mala e me cobri. Precisava esperar a hora marcada. Coloquei o relógio do meu lado e fiquei observando os ponteiros e contando os segundos que passavam. Tentei fazer minha última reflexão sobre a vida para tentar levar comigo algumas poucas lembranças. Mas era tudo tão confuso em minha cabeça... não conseguia ordenar os pensamentos! Então, peguei o caderno e comecei a ler a fim de acalmar minha mente e voltar a ter aquela certeza tranqüila de que iria fazer algo que realmente desejava. "Não deveria mais estar aqui! Se ela não merecia viver, eu menos ainda", eu pensava. Com o caderno em minhas mãos novamente, comecei a devorar aquelas palavras como antes. Conforme lia, ia me lembrando do meu amor e me entregando novamente ao sofrimento.

Quase na hora. Eu enrolado em um cobertor surrado, na cobertura de um prédio abandonado, num bairro em que ninguém me conhecia. Levantei-me e subi na mureta. Sem pensar em nada, olhei lá para baixo determinado a me jogar como um herói que salta de um edifício e sabe que vai voar. Eu voaria para a liberdade.

Foi então que o despertador tocou. Era meia-noite conforme eu havia programado. Deveria me jogar naquele exato momento. Não queria uma morte datada. Meia-noite em ponto não é um dia, nem o outro. É a transição. Aquela hora marcaria a minha transição desta vida para o além. No entanto, subitamente, aquele despertar do relógio, aquele barulho me fez recordar Elisabete. Ela sempre dizia que detestava despertador. Gostava de acordar com o sol. Lembrei-me de um dia em que, quando meu despertador tocou, ela disse: “O sol me acordou em silêncio. Pode um relógio marcar as horas da sua vida? É Deus quem marca as horas da sua vida. E olha que sol lindo Ele escolheu para acordar você!” Ela apontou a janela e sorriu-me.

Quando me lembrei daquele breve momento, percebi como um instante pode ser tão eterno. Desci da mureta e me detive ali petrificado com aquela lembrança. Deitei-me sobre um pequeno monte de terra e me cobri novamente esperando o sol do novo dia. Decidi reescrever minha história. Elisabete continua mudando os rumos da minha vida...

Autora: Gizele Toledo de Oliveira (direitos autorais reservados).